Como os jornais perderam o passo na era da informação virtual
RODRIGO MESQUITA
Publicado na Paiuí, junho de 2020
Rodrigo com o pai, Ruy Mesquita, no Alto Rio Negro, na Amazônia, em 1994: no ano seguinte, a Newsweek, então a maior semanal do mundo, diria que a internet era coisa de lunáticos
A imprensa cruzou os braços em 1995, quando a Web nascia. O mundo andou, e os gigantes da tecnologia conquistaram o seu mercado e dominaram o centro de uma estrutura construída pelos cientistas da década de Woodstock, ungidos pelo espírito libertário dos anos 1960, com o objetivo de que ninguém tivesse o controle da nova infraestrutura, que cresce pelas pontas e empodera a célula – ou seja, o indivíduo. Essa infraestrutura, que gerou a nova mídia, é a internet, cujos fluxos de informações, em função do domínio dos gigantes da tecnologia, estão apoiados e formatados pela publicidade, deixando a audiência exposta a operações de manipulação informativa num nível que acadêmicos, legisladores e mesmo jornalistas somente agora começam a entender de fato.
Em 2008, ano da crise financeira, quando já havia perdido o mercado de pequenos anúncios e começou a ficar sem os grandes anunciantes, a imprensa finalmente acordou. Mas acordou apenas para o potencial da rede de distribuir informação, atuando no novo ambiente midiático em formato broadcast – de um ponto para milhares, ignorando a via de retorno. Desconsiderou o fato de que tinha passado a atuar num novo ecossistema de informação, onde ninguém tem o domínio da opinião pública e todos podem interagir, articular, escrever, editar e publicar – um ecossistema muito diferente do antigo meio jornalístico, fechado e reservado a poucos nos seus predicados de interação e articulação.
Com isso, o campo ficou aberto para aventureiros na área da comunicação. Alguns deles desprovidos de ética e de responsabilidade social, capazes de recorrer a todos os recursos a fim de conquistar a atenção dos leitores para seus devaneios, valendo-se de processos de interação e articulação que têm como premissa as inseguranças e temores do público. Essas pessoas eram e são ainda uma ameaça à democracia.
Nasci num lugar que era como o anexo de uma redação, a casa do jornalista Ruy Mesquita, meu pai. Apaixonei-me pelo jornalismo ouvindo histórias sobre meu bisavô, Júlio Mesquita, publisher inovador, que revolucionou O Estado de S. Paulo ao priorizar o interesse público e desvinculá-lo de grupos políticos e econômicos, gestando assim o jornalismo moderno brasileiro. Era um homem consciente de que o público é sempre o protagonista e de que existe grande diferença entre o que almejamos para a sociedade e a dinâmica concreta da história. Tive também o prazer de conviver muitos anos com meu avô, Júlio Mesquita Filho, um jornalista que dedicou sua vida inteiramente ao Brasil.
Estudei e estudo a história tendo como perspectiva que o jornalismo é o primeiro registro do que somos e vivemos. Tive a sorte e o privilégio de começar a carreira profissional numa redação brilhante, que estava em sua melhor fase e sabia que o bom jornalismo é antes de tudo um exercício coletivo: a equipe do Jornal da Tarde. Essa redação não se teria destacado de outras do seu tempo se não tivesse havido ali um casamento positivo e profícuo entre governança e profissionais.
Todos os Mesquita da minha geração estavam fadados a trabalhar na empresa. Não almejava chegar à direção. Queria ser só jornalista e, como tal, conquistar o respeito dos profissionais. Desejava também fazer-me repórter especial: um jornalista que investigasse o que ocorre nos confins, que podem ser tanto as fronteiras de ocupação do planeta como uma esquina de São Paulo à qual poucos deram atenção.
Em 1976, com 22 anos de idade, minha primeira experiência na redação foi na mesa de triagem de telegramas. Comandava um grupo de contínuos que fazia a primeira separação de todo o material recebido da então maior rede brasileira de captação de informações nacionais, a da S.A. O Estado de S. Paulo, e das agências de notícias internacionais. Não havia melhor ponto de observação da redação, do comportamento dos jornalistas e de como tratavam a maçaroca que recebíamos diariamente. Pouco a pouco, comecei a ascensão profissional, passando por diversas editorias do Jornal da Tarde, na função de repórter, copidesque, subeditor, pauteiro, repórter especial e editor.
Tenho saudade dessa época e guardo o prazer de ter me envolvido, entre outros trabalhos, na cobertura (como repórter, pauteiro ou editor) da construção do trecho Rio-Santos da BR-101, responsável pelo deterioramento do litoral paulista. Também atuei na cobertura da campanha das Diretas Já, da ocupação do Planalto Central e Sul da Amazônia e na série de reportagens especiais do Jornal da Tarde – como Guerra aos que Querem Destruir Nosso Litoral, A República Socialista Soviética do Brasil e Os Guerrilheiros da Prosperidade Nacional. Como editor da área internacional do Jornal da Tarde, fui responsável pelo furo mundial sobre o início da Guerra das Malvinas, em 1982, que cobri como enviado especial, mesma função que me coube na cobertura da primeira fase da Guerra Irã-Iraque, em 1980, e da morte de Tancredo Neves, em 1985.
Todos esses trabalhos tiveram diversos desdobramentos ao longo dos anos. Os que causaram maior impacto em minha vida foram a cobertura da construção da BR-101 e a série de reportagens Guerra aos que Querem Destruir o Nosso Litoral. Esta última começou quando detectei, no início dos anos 1980, um processo de grilagem de 60 dos 90 km do litoral do Paraná, feito com uma violência desconhecida na região: homens armados comandados por um sujeito egresso de El Salvador, búfalos sendo usados para destroçar as roças das dezenas de vilas da região, que foram cercadas por arame farpado, e centenas de desmatadores desalojados das áreas inundadas de Itaipu que passaram a destruir as matas.
A apropriação das terras ia das praias às encostas da Serra do Mar, cuja altitude havia sido adulterada num processo em que o grupo empresarial responsável pela devastação conseguira financiamento do Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF), que não existe mais, para reflorestamento de palmito-juçara. Piada de mau gosto: não havia nem há tecnologia para isso. A Companhia Agropastoril Litorânea do Paraná (Capela), subsidiária de um grande grupo empresarial com interesses na exploração siderúrgica em Minas Gerais e negócios no Paraná, São Paulo e Rio de Janeiro, era a responsável pela operação de guerra. Naquele local, viviam as últimas comunidades caiçaras do litoral Sul do Brasil, e os céus desabavam sobre elas. Convivia com os caiçaras desde a infância e compartilhei do seu sentimento de fim de mundo e de sua revolta com a situação.
Fizemos centenas de reportagens, em quase dois anos de muito trabalho, com envolvimento direto meu, de Dirceu Pio, Randau Marques, Laurentino Gomes, Celia Romano e outros jornalistas do Grupo Estado. O movimento ambientalista era incipiente na época e mantinha uma aproximação forte com o Jornal da Tarde em função da cobertura que o diário fizera da reação da sociedade contra a construção de uma usina atômica na Jureia, no litoral paulista, e de um novo aeroporto para a capital paulista em Caucaia do Alto, no município de Cotia, na Região Metropolitana de São Paulo. Tal aproximação acabou gerando um processo de articulação entre o jornal e aquele setor da sociedade civil, e por isso foi importante em minha vida: o jornalismo só tem sentido enquanto ferramenta de articulação da sociedade. Esse trabalho me jogou de braços abertos nessa direção.
Em 1986, a Capela foi obrigada a se retirar do litoral do Paraná – que, somado ao litoral Sul de São Paulo, é hoje o que resta da costa brasileira não destruída pela especulação imobiliária – e criamos a SOS Mata Atlântica, fundação para perpetuar os cuidados com o litoral e a província de Mata Atlântica. O primeiro presidente foi Fábio Feldmann, que ficou no cargo por cerca de seis meses. Na eleição de 1986, ele resolveu se candidatar a deputado federal. Acreditávamos que não conseguiria o cargo, mas seus eleitores acabariam ficando como o cabedal da fundação: houve uma enorme abstenção, e ele se elegeu.
Sobrou para mim, que não ambicionava ser presidente da SOS Mata Atlântica por causa da minha atividade jornalística. Sempre tive preocupação com a questão ambiental, mas meu único ativismo é o jornalismo, e meu envolvimento com os ambientalistas ocorreu em função da minha solidariedade aos caiçaras ameaçados pela Capela. Criamos a campanha “Estão tirando o verde da nossa terra”, conseguimos uma doação de 400 mil dólares da Fundação MacArthur e, a partir daí, estruturamos a entidade durante meus seis anos como presidente, em trabalho voluntário, sem nunca termos recorrido a ela para nos promovermos e sempre em respeito pelo conselho da entidade, que representava de fato a sociedade civil.
Em 1984, assumi a função de editor-chefe, ou secretário de Redação, do Jornal da Tarde por aspiração e delegação da própria redação. Foi um período duro. A empresa vinha promovendo cortes contínuos havia anos, em função de um empréstimo em dólares para construir seu novo prédio e da primeira grande desvalorização do cruzeiro por Delfim Netto, em 1979. Assumi a redação no momento que Fernando Mitre saía para criar a revista Afinal, levando consigo o primeiro homem de cada editoria. Eu buscava na indústria jornalística movimentos que indicassem a criação de novas oportunidades e acabei me fixando nas atividades da Reuters, que, depois de passar por uma situação ruim nos anos 1960, tinha se voltado para as novas tecnologias e lançado para o mercado financeiro o primeiro serviço de informações econômicas em tempo real.
Em 1988, o Grupo Estado sofreu uma profunda reestruturação, e fui para a Agência Estado, unidade operacional do grupo fundada em 1970 para aglutinar toda a estrutura de captação de informação da empresa – historicamente a sua força e grande diferencial competitivo –, servindo aos dois jornais (O Estado de S. Paulo e Jornal da Tarde) e à rádio Eldorado, também parte da empresa. A Agência Estado era um túmulo para os aspirantes ao vedetismo.
Comandada pelos jornais, essa plataforma funcionava conforme o deadline das redações do Estado e do JT. Em São Paulo, tinha um gestor e meia dúzia de jornalistas que caçavam matérias nas redações para distribuir a vários jornais brasileiros. A essa altura, a Reuters já tinha virado o jogo e se transformado em uma empresa pós-moderna de jornalismo internacional, oferecendo serviços tradicionais para os meios de comunicação e novos para o mercado financeiro.
Aproximei-me de Enrique Jara, jornalista uruguaio que comandava a Reuters na América Latina, a partir de Buenos Aires, onde na época ficava o principal escritório da empresa no continente. Aprofundamos as prospecções e os estudos sobre novos serviços para a nova empresa que estávamos criando. A equipe liderada por mim reformulou toda a cadeia de captação de informação do Grupo Estado, na época a rede de maior capilaridade do jornalismo brasileiro. Com seus processos renovados, deixou de trabalhar em função do deadline dos jornais e abraçou um novo sistema, compatível com a necessidade de uma empresa de informação que servia dois jornais, uma rádio e o mercado consumidor de informações, abrindo oportunidades para todos os envolvidos. Naquele início nos servíamos da Arpanet (rede de computadores que precedeu a internet) ao fax, passando pelo telex, para distribuir os serviços.
Mergulhamos em seguida nos mistérios das novas telecomunicações, com toda a sua parafernália de computadores e softwares, e os desvendamos, ou pelo menos perdemos o medo deles. Tanto jornalistas quanto profissionais da área comercial do tempo do papel se tornaram capazes de especificar softwares junto ao pessoal da tecnologia.
O objetivo era criar um serviço de informação econômica em tempo real para o mercado financeiro, na época o único segmento da sociedade aparelhado para recebê-lo e disposto a pagar por isso. E um software para esse mercado precisa de alguma sofisticação. Não existe de fato serviço de notícia em tempo real, mas entregávamos o pregão das Bolsas usadas pelo mercado brasileiro com um delay de, no máximo, um segundo e meio (o “tempo real”), com uma cobertura jornalística técnica, que incluía notícias que afetavam os mercados, análises, o diabo. Para se ter ideia, distribuímos num dia um volume de informações equivalente ao publicado em um ano pelo Estado de S. Paulo. E cada uma das telas dos nossos clientes era totalmente personalizável, nenhum deles via exatamente os mesmos dados, e cada um podia montar suas telas em função dos mercados em que trabalhava e do público a que servia.
Como dizia Enrique Jara, tínhamos a obrigação de focar nisso não só porque era um bom negócio, mas porque os classificados – que eram a base de sustentação de todos os jornais do mundo – acabariam por migrar inexoravelmente para os novos sistemas. Foi recorrendo a essa argumentação que defendi o investimento junto ao conselho da empresa em 1990. Seria o primeiro passo para entendermos o que era trabalhar em rede, sem o domínio do público, sem barreiras de entrada, num mundo com vias de duas mãos em que todas as pessoas são publishers.
AReuters tinha o “Rolls-Royce”: um serviço desenhado para o topo do mercado global, pelo qual a agência firmava contratos leoninos e cobrava preços estratosféricos. Construímos o Fuscão envenenado: um serviço desenhado para a média do mercado brasileiro, com preços razoáveis, contratos amigáveis e – a grande inovação – meios alternativos de distribuição. Além de linhas telefônicas privadas da Embratel, que não garantia qualidade nem escala, utilizávamos para a distribuição dos serviços, de forma pioneira em todo o mundo, a sub-banda de radiotransmissão (faixa em geral ociosa e algumas usadas para carregar bits) das rádios FMs. E nasceu então a Broadcast, empresa que em pouco tempo conquistou o mercado brasileiro, mostrando à Reuters que esse mercado era maior do que imaginava a agência internacional.
Lançamos a Broadcast em 1991. Três anos depois, os investimentos estavam pagos. Com esse serviço e outros igualmente inovadores, mas com menos tecnologia agregada, a Agência Estado começou a caminhar para uma liderança inequívoca do mercado. Para os envolvidos em todas as áreas da empresa, foi um prazer construir a nova Agência Estado, uma unidade de negócios aberta ao mercado, e atuar nela. Tínhamos liberdade para criar, trabalhar e muita responsabilidade, sem os cacoetes e vícios dos jornais e sem a pretensão de sermos os xerifes da razão. Nosso objetivo era interagir com o público e, assim, servi-lo, como no início da história moderna dos jornais.
Quando assumimos a unidade operacional, ela faturava cerca de 400 mil reais por ano, valor que não se realizava integralmente por desleixo na cobrança. Na realidade a agência estava totalmente voltada para os veículos da casa. Entregamos uma nova empresa com mais de 100 milhões de reais de faturamento, com margem de lucro de quase 30%, líder do mercado de informação financeira e de todos os outros em que atuava – uma empresa focada nos clientes, entre os quais se incluíam, é claro, os jornais da casa. Situação que perdura até hoje, apesar de não ter sido feita nenhuma inovação substancial.
O aprendizado estava só começando. No início dos anos 1990, fui convidado pela Innovation International Media para um encontro de jornalistas da América Latina na Universidade Harvard. Apresentei no seminário minha visão sobre o futuro das empresas de informação. Na plateia, estava Jerome Rubin, chairman do programa News in the Future (Notícias no futuro). O programa fazia parte do Media Lab, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, o MIT. Rubin tinha fundado e depois vendido a primeira grande empresa eletrônica de informações jornalísticas, o LexisNexis, uma base de dados dinâmica da jurisprudência norte-americana que indexava diariamente cem dos maiores jornais dos Estados Unidos. Terminado o seminário, Rubin, que com o tempo se tornou meu pai norte-americano, disse que tinha gostado da apresentação e que eu deveria participar como representante do Grupo Estado no News in the Future.
Convenci o Grupo Estado e fui. Minha vida profissional já tinha mudado radicalmente. Não imaginava que poderia ser muito diferente do que era. Mas mudou outra vez e me trouxe a esperança de, no futuro, voltar a atuar como repórter dos confins. Agora não numa esquina de São Paulo ou nos limites da Amazônia, mas cobrindo o processo de ocupação da última fronteira da humanidade nos confins da rede formada pela internet, que deflagrou o processo de inovação mais radical e violento já vivido pelo ser humano.
Mais do que de invenções, como ocorreu na Revolução Industrial, o resultado prático – em termos de produtividade, criação e distribuição de riqueza – depende agora do entendimento da sociedade sobre o que é a rede das redes, do amadurecimento de sua visão a respeito dessa tecnologia e do modo de usufruir dela. É um trabalho para essa geração e as futuras. Ainda está no início de sua expansão esse emaranhado de sistemas criado pela internet, com as invenções que nela se dependuram e dela dependem, ampliando os limites e possibilidades das sociedades com novos caminhos de interação e articulações de todo tipo: sociais, políticas e econômicas.
Era esse o foco do programa do Media Lab: ajudar a indústria jornalística a entrar com o pé direito no tempo das redes, que são uma extensão do mundo analógico e sua única possibilidade de rejuvenescimento. Todas as grandes empresas e grandes veículos do jornalismo norte-americano estavam lá, do New York Times à Time Warner. Também marcava presença o McCann Worldgroup, agência internacional de publicidade.
Em outros programas específicos, estavam as operadoras de telefonia, a indústria de software e games, entidades médicas e governamentais, além de empresas de vários outros setores, de todo o mundo. O Media Lab tinha sido fundado por Nicholas Negroponte e Jerome B. Wiesner em 1980. Wiesner, que fora conselheiro científico de John Kennedy e presidente do MIT, deu guarida ao jovem Negroponte, que havia previsto no final dos anos 1970 a convergência das mídias. Juntos, eles criaram o laboratório de tecnologias digitais do MIT, que teve enorme responsabilidade na gestação da revolução tecnológica. Com certeza, de todos os setores da economia que participavam dos programas do Media Lab, o mais reticente e arrogante era a indústria da informação. Em grande parte por causa de seu domínio, de mais de um século, sobre a opinião pública.
Seria uma digressão expor aqui parte do que aprendi sobre o mundo atual e os caminhos futuros durante dezesseis anos de convivência (dez deles como representante do Grupo Estado e os últimos seis como pesquisador afiliado) com esse centro de pesquisas e estudos de excelência mundial. Mas não posso deixar de mencionar dois ensinamentos que viraram totens para mim.
Hoje, todos nós temos consciência de que vivemos num mundo “em beta”, ou seja, envolvido num processo de mudança contínuo e em alta velocidade. Naquela época era diferente, mesmo lá no Media Lab não se falava nisso com a contundência de hoje, mas estava muito enraizada a certeza de que vinham sendo fermentadas duas revoluções, como disse o cientista Walter Bender: “A primeira, uma revolução de comunicação interpessoal. A segunda, não uma revolução da tecnologia, mas da epistemologia e do aprendizado. Construcionismo, aprender fazendo, a revolução de Dewey, Piaget e Papert. Nela, o aprendizado acontece melhor não no espaço formal da sala de aula. Acontece em aplicações concretas. Eis porque devemos buscar construir ambientes para aprender fazendo.”
Ao analisar a segunda revolução, Bender antevia com clareza que a sociedade teria pela frente uma nova arquitetura cognitiva, um novo ambiente cognitivo, que com o tempo seria dominante. Daí a necessidade de construir ambientes que permitam fazer. O cientista dirigia o programa News in the Future, e poucos anos depois se tornaria o braço direito de Nicholas Negroponte na direção operacional de todo o Media Lab. Bender desenvolveu também as primeiras pesquisas sobre redes sociais, que no Media Lab eram chamadas “redes orgânicas”.
Entrei nesse think tank em 1994 e ter me conscientizado de que eram duas, e não uma, as revoluções em processo – a tecnológica e a epistemológica – foi algo fundamental para poder armar e desenvolver o projeto da Agência Estado, que não parou de inovar. Outra noção importante foi a de que software é informação, pois compõe e alavanca a informação jornalística e qualquer outra. Isso aprendi com os cientistas do Media Lab e com brasileiros como Demi Getschko, figura fundamental no desenvolvimento da Agência Estado.
Hoje, não tenho dúvida de que a ignorância a respeito desses dois fatores de grande parte da indústria jornalística e, por consequência, de jornalistas teve enorme responsabilidade na dimensão que alcançou a crise no setor quando a web emergiu. Vivi e assisti a isso de dentro do Media Lab e também do Grupo Estado, do qual sou acionista. Em 1995, a Newsweek, então a revista de maior tiragem impressa de todo o mundo, publicou um texto chamado The Internet? Bah. O subtítulo era menos agressivo, mas talvez mais arrogante: Why Cyberspace Isn’t and Will Never Be Nirvana (Por que o ciberespeaço não é e nunca será o nirvana). Nicholas Negroponte era apresentado como um lunático, e o Media Lab, como um local de formulação de delírios.
Entre os tópicos analisados sem nenhum fundamento pelo autor do artigo na Newsweek estava a possibilidade de realizar vendas por meio da rede de computadores. Ele argumentava que era uma alucinação imaginar que a internet iria acabar com a célula mater do capitalismo: o vendedor. Na empresa de minha família, questionavam se eu estava querendo dizer que nosso negócio iria acabar. Tentava explicar, sem sucesso, que o negócio não iria acabar, mas que sofreria profundas mudanças, como toda a sociedade, e que, caso não nos preparássemos para isso, iríamos ter sérios problemas pela frente. Deveríamos começar a nos preparar para enfrentar o tsunami bem equipados e iniciando já naquela época a adaptação dos processos clássicos do jornalismo para uma sociedade ativa na rede e com canal de volta. Mas ficamos isolados na Agência Estado. O Grupo Estado e sua direção continuaram vinculados à era industrial.
A maioria da indústria jornalística, acomodada em já fragilizados oligopólios locais, se confortou com a arrogante e desacertada visão do artigo da Newsweek, sem se preocupar em estudar o que significava sair de um ecossistema de informação broadcast, no qual tinha domínio sobre o público, e entrar em um ecossistema em rede, o ambiente midiático da era da informação, onde já não teriam domínio sobre ninguém. Enquanto isso, empresas como a Google, hoje da Alphabet, começavam a refletir sobre como fariam dinheiro. Realizar vendas foi o primeiro objetivo.
Ora, vendas, tanto no ecossistema analógico broadcast quanto no ecossistema em rede, têm como premissa provocar emoção e desprezam totalmente a razão. O algoritmo tem a capacidade de formar redes a partir do nada e aprender com o tempo. E o tempo corria a favor dos novos entrantes. Nenhuma empresa do setor jornalístico se dispôs a refletir nem um minuto sequer sobre a possibilidade de provocar, fomentar e mediar processos de formação de redes em torno das questões básicas da vida das pessoas – educação, saúde, infraestrutura, segurança, saneamento, ciência e tecnologia –, em suas interações e articulações com o conjunto dos problemas sociais, políticos e econômicos.
Enquanto empresas como a The New York Times Company jogavam dinheiro no lixo comprando por 1,1 bilhão de dólares o Boston Globe para vender anos depois por 70 milhões de dólares, enquanto a imprensa e os jornalistas continuavam convencidos, como parecem estar até hoje, de que com suas marcas e nomes continuariam donos da opinião pública, os novos entrantes desenvolviam com algoritmos (e, junto, bots, malwares e outros bichos do mesmo naipe) as próprias redes, tendo a emoção na base dessa construção e com o objetivo de realizar vendas.
Por isso, hoje, quem domina a internet – e manda nela – são as tecnologias publicitárias, como demonstrou o Tow Center da Universidade Columbia no documento Guide to Advertising Technology (Guia para a tecnologia publicitária), publicado em dezembro de 2018. Por isso, o debate cívico em todas as plataformas sociais e nas redes que se formam em torno delas é regido pela lógica das vendas. Essa não é a única explicação para o processo contínuo de desinformação que nos assola – muito bem descrito no documento Information Disorder: Toward an Interdisciplinary Framework for Research and Policy Making (A desordem da informação: rumo a um arcabouço interdisciplinar de pesquisa e formulação de políticas públicas), encomendado pelo Conselho da Europa, que está servindo de base para o início da regulamentação da ação dos gigantes da tecnologia –, mas é um dos bons motivos.
O que determina a formação da opinião pública nesse novo ecossistema – o planeta expandido pela rede das redes e as possibilidades que ela abre com seus novos caminhos de interação e articulação de todos os tipos de relação humana – são os fluxos de informações e as narrativas que carregam, responsáveis pelos fluxos de atenção. Estou falando das redes sociais, autônomas ou estimuladas, que precisam ser cobertas jornalisticamente com o algoritmo e todos os recursos técnicos que a rede permite e também com o melhor dos jornalistas e apurações jornalísticas de fôlego. Twitter, YouTube, Instagram, Facebook e similares são ferramentas, plataformas, a partir das quais se formam as redes sociais, que são de cada um de nós, o público.
A insistência da imprensa em apresentar as chamadas fake news como as principais responsáveis pela balbúrdia que envolve todo o planeta contribui para criar ainda mais confusão na cabeça do público, abandonado à própria sorte. Sem nenhuma mediação da imprensa que, omissa em relação ao fato de que as notícias abrem a porta para a participação, não cumpre sua missão e deixa de lado sua razão de ser: ajudar-nos a entender, a navegar, a separar a ordem do caos, porque a ordem surge do caos graças à habilidade de enfatizar aquilo que é importante e universal.
Anova realidade exige um novo comportamento da imprensa e dos jornalistas. Não se trata de o jornalista se colocar como influenciador, uma hipótese não descartável desde que inserida no todo. O desafio é trabalhar de forma organizada e coletiva, regidos por uma certa ideia do que é a sociedade (local) e quais são suas possibilidades futuras, com uma governança adequada ao tempo das redes. E, mais do que isso, abrir-se ao público, ouvindo-o antes de formular mensagens, que devem sempre estar abertas ao retorno, ao diálogo.
Bem ou mal, a reação está ocorrendo. A imprensa tem coberto com mais atenção e profundidade os movimentos dos novos impérios de tecnologia. Mas isso é pouco. É possível fazer mais, desde que os fluxos de informação e atenção passem a ser cobertos jornalisticamente com o melhor do algoritmo e jornalistas competentes. Não, isso não é um sonho nem um delírio. Existem na internet dezenas, senão centenas, de empresas que oferecem serviços sofisticados tanto de curadoria quanto de monitoramento, e não só para classificar como positivas ou negativas as manifestações do público sobre determinado tema. Elas oferecem também serviços que permitem identificar quem é quem numa rede social e o que determinada rede social está publicando.
As empresas jornalísticas poderiam e deveriam ter os próprios sistemas para fazer isso – ouvir e prospectar de forma contínua a opinião pública – e acompanhar a reação das pessoas ao que está sendo publicado, apresentando essa cobertura jornalística em páginas tecnologicamente dinâmicas na internet, analisadas e comentadas por jornalistas. Esse processo com certeza contribuiria para a construção de novos modelos de negócios. Restringir tal possibilidade à venda de assinaturas significa condenar à morte a maioria dos atuais players da indústria jornalística.
É preciso ter consciência de que, daqui para a frente, a formação da opinião pública vai ser cada vez mais fragmentada, complexa e autônoma. O desafio é ocupar os espaços civilizatórios dos fluxos de informação para enfrentar os da barbárie, estes mais organizados do que a imprensa nas redes sociais atualmente. Como as hordas da barbárie não têm passado nem compromissos com nada além de sua própria verdade, conseguem avançar rápido em épocas de rupturas tão profundas quanto as que estamos enfrentando. Por tudo isso, é preciso contribuir para que as novas gerações de jornalistas entendam que não se faz jornalismo sem ouvir e prospectar o público, o protagonista de toda a história.
“Quando se vive em uma era da informação, a cultura se torna um grande negócio, a educação se torna um grande negócio, e a explosão da cultura através da explosão da informação torna-se cultura por si mesma, derrubando todas as paredes entre cultura e negócios”, alertava o teórico da comunicação Marshall McLuhan, na década de 1970, quando o processo apenas engatinhava. A imprensa, para ter sentido, tem de ser capaz de cobrir a nova realidade – a cultura se formando em tempo real nos fluxos da rede – e fazer o que está ao alcance para conquistar competências para isso.
A alternativa é jogar a toalha e brincar de influenciador, o lobo solitário, explorando a ignorância do público e contribuindo para que a balbúrdia seja um fenômeno permanente e dominante, com as forças da barbárie comandando o processo – no Brasil, muito bem representadas pelas redes sociais dos Bolsonaro, as mais organizadas desse novo ecossistema de comunicação da sociedade.
Não procuro dirigir nem criar a opinião pública no meu Estado. Ao contrário, procuro apenas sondar com cautela as opiniões em que o Estado se divide e deixo-me ir, confiado e tranquilo, na corrente daquela que me parece seguir o rumo mais certo.
Júlio Mesquita – 1862 – 1927, uma cabeça de rede em qualquer época
Rede social sempre existiu, o desafio é trabalhá-la também no mundo digital e, consequentemente, na nova infraestrutura da economia. É este o caminho para as velhas redações continuarem desempenhando seu papel no ecossistema da informação, comunicação e articulação da sociedade. Se dominam (como deveriam) o ferramental da internet, suas mídias e ferramentas, cabe a elas construir, manter e contribuir para a articulação de redes de interesse e segmentos da sociedade, que é o papel histórico dos jornais.
Redes sociais não são as ferramentas/mídias (FB, Twitter, Blog, Sulia, Pinterest, Papper.li, Scoop.it, Ning, Youtube, Tumblr, Google+, RSS, o diabo). São as suas (você indivíduo, você entidade, você empresa) relações (amigos, consumidores, fornecedores, distribuidores) articuladas por meio das ferramentas/mídias que você escolheu para estruturar a sua rede social com as tecnologias digitais na Web
Monitoramento + curadoria + edição jornalística da aparente balbúrdia (O dilúvio está aí, falta o Noé) considerando a arquitetura da nova infraestrutura, a nova plataforma da informação, comunicação, articulação da sociedade, é o desafio que temos pela frente. Ênfase para organização da informação, sem menosprezar a cobertura jornalística clássica. As fontes estão na rede, todas as fontes estão na rede. Não existem dois mundos, o analógico e o digital. Um é extensão do outro. Conteúdo não é consequência da sua capacidade escrevinhadora. O conteúdo é o ponto de partida para a articulação da sociedade em torno dos seus interesses. O momento hoje é das redes digitais. A geração de conteúdo – monitoramento + curadoria + edição jornalística (agregação) – é o caminho para construir redes digitais de interesse específico ou de nicho, redes sociais dentro da rede e o conjunto das mídias que a compõe.
O jornalista Frédéric Filloux, hoje um analista e consultor do setor, argumenta que o drama das tradicionais empresas jornalísticas (e dos jornalistas) é que ambos se sentem intelectualmente superiores aos mortais comuns. Em função disso, não mergulharam nas peculiaridades da internet. A principal delas é a capacidade do algoritmo de criar comunidade sobre comunidade a partir do nada. Nós jornalistas não somos o farol do mundo, somos uma ferramenta do público. Tanto nós quanto as empresas jornalísticas precisamos recuperar o papel de intermediário, de filtro, e abandonar os arroubos de ‘autoridade’, de donos da verdade.
A oportunidade está aí, num mundo mais fragmentado, complexo e rico. Monitoramento e curadoria (contexto e perspectiva) em processos organizados é o mercado para os velhos players. E é a Demanda Zero para a imensa maioria dos usuários da rede, vítimas da balbúrdia opinativa das mídias sociais. A notícia é o início da conversa, abre a porta para o diálogo, um convite para a participação. O negócio dos jornais é consequência da sua capacidade de articular públicos em torno de ideias, sonhos, problemas, consumo. A informação, editorial e comercial, é ferramenta. Nada mudou. Ficou mais complexo e rico.
A Web é infraestrutura, além de fonte básica sobre qualquer matéria. Uma redação tem de estar preparada para “editar” a rede, com um determinado olhar, foco, viés, e com isso contribuir para a articulação de públicos, para a articulação da sociedade em torno dos seus interesses. A Web é um ecossistema mais complexo e fragmentado, composto por novas ferramentas/mídias e processos de interação, com uma dinâmica evolutiva jamais sonhada.
Rede social é a base das suas relações, seja você um indivíduo, uma entidade, uma empresa, um setor da economia, um partido político, uma igreja, o que for. Fornecer a arquitetura e estruturar estes processos na rede e suas ferramentas/mídias é a extensão natural do papel histórico dos jornais, das tradicionais empresas de informação, do mundo analógico para a sua extensão digital. Da informação segmentada para setores da sociedade para a organização de setores por meio da curadoria, agregação e articulação da informação do público, o que significa também geração de informação. O conteúdo ganha novos significados, num novo contexto, mas com a mesma perspectiva.
um esboço de modelo
Não é mais possível menosprezar ou ignorar as novas possibilidades de organização que a Web nos traz. Os impactos vão da relação capital versus trabalho, à interação com o mercado; a nova infraestrutura permite e fomenta novas arquiteturas de negócios, novas arquiteturas de relacionamento político e novas arquiteturas de relacionamento social. Ela não é só um novo meio de armazenamento, processamento e distribuição de informação. É muito mais do que isso e, embora não seja a causa primária, compreendida em toda a sua dimensão, ajuda a entender a profundidade e extensão da crise global que estamos vivendo.
O jornal é um conceito, o ponto de encontro, a Ágora da pólis, a cidade-Estado na Grécia da Antiguidade clássica. Esta missão está viva na rede. A demanda de serviços e produtos de informação para a articulação e organização da sociedade é enorme. Os processos informativos das mídias sociais são um novo componente, mas ainda não conformaram o ponto de encontro, a praça para a reflexão sobre onde estamos e para onde vamos. O jornal de papel não desaparece neste processo, ele complementa a landing page para público, o eixo de sustentação deste novo processo, num conceito que vai muito além do de home pages concebidas para distribuir informação ao invés de servir como ponto de encontro para a reflexão e o debate.
Artigo publicado
na revista de jornalismo da espm em 2014
Olhando o futuro pelo espelho
retrovisor
O ano era
94, o país o México, governado pelo corrupto Carlos Salinas, que tinha adotado
uma política de ajuste do câmbio correlacionado às variáveis de inflação e
juros, com uma desvalorização progressiva e controlada do peso atrelado ao
dólar. Na campanha presidencial um dos candidatos é assassinado. Salinas passa
o governo para Ernesto Zedillo, que em 20 de dezembro decide desvalorizar o peso para promover as exportações
mexicanas. Todo o sistema desmorona fazendo o país entrar numa crise que durou
anos e gerou o Efeito Tequila: uma
crise de confiança do mercado financeiro internacional que afetou profundamente
a economia brasileira e de toda a América Latina.
Foi neste
contexto de crise que escrevi o artigo publicado em 26 de março de 95 no
caderno de economia de O Estado de S Paulo sob o título nebuloso de autor
desconhecido Tempo Real vai democratizar
a informação e aqui republicado na abaixo com o título finalmente revisado A Tecnologia democratizará os processos de
informação. Desde 88, dirigia a Agência Estado, uma unidade operacional da
empresa, com o os objetivos de transformá-la numa unidade de negócios e
contribuir para que o Grupo Estado abraçasse o futuro do mundo da informação: o
domínio das possibilidades do computador, dos softwares e das telecomunicações.
Na AE, desde esta época, tínhamos consciência de que a emergência das TICs
botaria o indivíduo no centro do processo. As empresas jornalísticas iriam
perder o domínio do público.
Esta
aventura fascinante, infelizmente abortada, começou em 88 com um pequeno grupo de
jornalistas que comungou minha visão de futuro desenvolvida em meados dos anos
80. No primeiro passo, reformulamos todos os processos informativos
(prospecção, captação e distribuição) do Grupo Estado para que ele pudesse
avançar no mercado como empresa de informação e não exclusivamente
jornalística.
Além disso,
fomos responsáveis pela especificação de um sistema eletrônico de recebimento e
distribuição de informação desenvolvido in
house. O Grupo Estado tinha iniciado seu processo de informatização, mas
nas áreas editoriais só tinham contemplado das redações dos jornais para baixo.
A entrada e saída da informação continuava dependendo de uma obsoleta e
restritiva rede de telex. Ninguém na empresa tinha refletido e muito menos
analisado este gargalo. Esta foi uma das
vantagens competitivas da AE: nunca dependeu de sistemas centralizados com a
inteligência fechada numa caixa preta. Tecnologia é informação, compõe e
transforma a informação, tínhamos que ter o domínio das nossas ferramentas.
Depois desta
primeira arrancada para poder chegar ao mercado com eficácia, reorganizamos e
desenvolvemos novos serviços para o mercado de jornais e revistas e lançamos
serviços de informação empresariais e ambientais distribuídos por fax. Já
éramos uma unidade de negócios. Uma receita marginal de 400 mil cruzados
avançava para alguns milhões.
Em 92,
depois de uma maratona atrás do que havia de mais avançado na indústria da
informação, lançamos a Broadcast: o
serviço de informações em tempo real do Grupo Estado para o mercado financeiro,
que enfrentando Reuters, Bloomberg e a falecida Telerate da Dow Jones, empresa
do Wall Street Journal, já era líder de mercado em 94, posição que mantém até
hoje. Os investimentos para a partida estavam pagos e a empresa faturava
dezenas de milhões de reais, com uma margem muito maior do que a dos jornais.
Desde o
início, este grupo de profissionais que transformou a Agência Estado numa
empresa referencial para o mercado tinha consciência que a Broadcast era uma plataforma de aprendizado e que no futuro próximo
a base das receitas das tradicionais empresas jornalísticas, os classificados,
seria roubada pelas telecomunicações (a internet que estava nas nossas portas),
por ambientes criados por softwares e processados pela computação.
Tínhamos que
começar em algum mercado e o único aparelhado e disposto a pagar por serviços
nestes meios era o financeiro. Em 92, filiamo-nos ao laboratório de mídia do
MIT, o Media Lab. Foi lá, nos programas News in the Future, Information:
Organized e Simplicity, que se
consolidou a nossa visão de que daria certo neste novo mundo em constante beta
e cada vez mais distribuído, descentralizado e descontínuo quem tivesse coragem
de se perder na rede. Mais do que
informar, o papel das empresas de informação foi e será sempre contribuir para
os processos de articulação da sociedade. A notícia é meio, não o fim.
O processo
de formação da opinião pública daqui para frente será cada vez mais fragmentado
e autônomo, assim como a própria sociedade. A revolução tecnológica que estamos
vivendo é muito mais profunda do que a do século 15, quando a reinvenção da
prensa pelo mundo ocidental e outras inovações abriram o caminho para o
processo que levou à revolução industrial.
A Tecnologia
democratizará os processos de informação
Rodrigo Lara Mesquita diretor da Agencia Estado – março 1995
É redundância
dizer que estamos assistindo ao mais profundo, dramático e rápido processo de
mudança que a humanidade já sofreu. Mas é necessário quando estamos falando de
responsabilidade das empresas e profissionais empenhados em informar o mercado
financeiro: o primeiro setor da nossa sociedade que se interligou em tempo real
globalmente, subvertendo a ordem instituída e questionando a noção de soberania
nacional.
Se isso já
está claro há muito tempo para a pequena parcela da aldeia global que participa
ativamente deste mercado, é uma grande novidade e fator de insegurança para os
meros mortais que vêm de um dia para o outro a economia de um país – o México,
e por consequência a de todo o nosso Continente – sofrer uma revolução em
função da movimentação dos trilhões de dólares que alimentam o mercado
financeiro internacional.
Até que
ponto um fato como este é de responsabilidade dos protagonistas deste mercado,
ou de políticas governamentais, ou de questões estruturais, como cultura
protecionista e corrupção, não é objeto deste artigo. Nossa responsabilidade,
empresas e profissionais dedicados a fornecer informações em tempo real para o
mercado financeiro, é com a correção e acurácia da informação, com a certeza
dos protagonistas do mercado de que não temos nenhum tipo de interesse ou
posição no mercado. Mais do que isso, a certeza de que o grupo empresarial que
hoje sustenta a operação não tem outro interesse econômico fora do setor de
informação.
O nosso dia
a dia é feito de sangue frio e responsabilidade. Sangue frio porque centenas de
pessoas estão envolvidas num processo de captar, processar e enviar notícias,
análises e dados para milhares de telas de computadores – em mesas de operação
de bancos, corretoras, traders, scalpers, departamentos financeiros de empresas
– e, por isso, a responsabilidade: são eles que movimentam os trilhões de
dólares. Uma operação como essa envolve não só jornalistas. Envolve homens de
tecnologia, de marketing, de relação comercial e de administração. É uma
operação casada em tempo real, em que todos têm o mesmo nível de
responsabilidade em relação à nossa missão: instrumentalizar os homens do mundo
de negócios para tomar posições.
Mas temos um
paliativo: a certeza de que será este o processo da indústria da informação
daqui para a frente. Houve um tempo em que o meio jornal tinha o monopólio da
informação. Era o único canal entre a sociedade civil e o poder público.
Representou, com o desenvolvimento da revolução industrial, a praça da cidade
antiga: o ponto de encontro da coletividade. O lugar onde ela se encontrava
para se informar, refletir e debater o seu próprio futuro.
Depois,
vieram o rádio e a televisão. Junto com eles, a massificação. A possibilidade
de um grupo econômico interferir como nunca na evolução dos costumes e da
cultura. Com o domínio da informática, que permite a um grande grupo
tradicional de informação ter numa mesma base tudo o que captou por meios
próprios ou de terceiros, e com o domínio da telecomunicação, que permite a
este mesmo grupo fornecer a informação para os mais diversos públicos, pelos
mais diversos meios, o jogo mudou.
A revolução
da informação trouxe incerteza e insegurança. Trouxe a possibilidade de
movimentos especulativos jamais sonhados. Mas trouxe também a possibilidade da
democracia direta. Quanto tempo e a que custo chegaremos lá é outra questão. O
fato é que a forma como hoje o mercado financeiro se informa, em tempo real
globalmente, já é algo possível para os mortais comuns: a Internet e derivados
representam a democratização da informação, que muito em breve transitará por
ela em texto, imagem e som em tempo real. Agora, muito além do que entre todos
os mercados, entre todas as pessoas, que estarão no centro do processo.
0 desafio
que se coloca para as empresas é perceber que todas as suas cartas estão nos
recursos humanos: a tecnologia, o meio, será de todos com custos
insignificantes. A futura (não tão futura assim) empresa de informação terá a
possibilidade de oferecer ao público conhecimento agregado. Num processo que
privilegia a horizontalização, o trabalho através de células comprometidas com
o processo. Ao contrário do antigo processo industrial, que privilegiava
estruturas piramidais e concentração de poder. O desafio dos profissionais da
informação é manter o elo de confiança com o público em geral, conscientes de
que no próximo milênio as grandes empresas de informação vão se atomizar em
pequenas unidades. Estamos a um passo da aldeia global. O que estamos
assistindo no mercado financeiro é só a ponta do iceberg. A democratização da
produção e a disseminação da informação só se legitimarão na medida em que os
agentes deste processo tenham consciência rigorosa da sua responsabilidade com
o público.
A era das multiplataformas começará a se
consolidar em 2014
Considerando que nos próximos 10 anos a tecnologia estará integrada nos
ambientes e em cada um de nós – não será mais algo que você liga e desliga – e
que isso mudará totalmente a experiência humana de viver, vejo os avanços das
multiplataformas (redes de ferramentas distribuídas que compõem e conformam as
redes sociais) de atuação na internet como a principal tendência em 2014.
Monitoramento, curadoria e agregação, articulação e governança são os
processos provocados na sociedade pela linguagem, pela informação. Da linguagem
oral à eletrônica, que promete, se não o retorno, a revalorização da cultura
oral. Mídias sociais como twitter, facebook, linkedin, medium, pinterest,
tumblr, youtube, paper.li, rebelmouse, instagram, scoop.it, flipboard, meddle
etc são plataformas pontuais,
ferramentas, mídias.
Num mundo que a cada dia ganha maiores índices de complexidade e
fragmentação atuar de forma isolada com uma ou outra destas mídias é inócuo.
Indivíduos, profissionais e empresas que atuam com propriedade e objetividade
no novo ecossistema da informação vêm avançando na construção de suas redes
sociais (multiplataforma) com o conjunto de ferramentas que lhes parecem mais
apropriadas para seus objetivos.
Rede social existe desde a idade da pedra. É a base de relacionamento de
indivíduos, de entidades, de empresas, de setores da economia, de partidos
políticos, de sindicatos, de qualquer organização humana. No mundo digital, na
economia social, esta base de relacionamento tem que estar organizada na rede
para lhe dar mais organicidade e objetividade.
Consolida-se aí o conceito de multiplataforma (e viabilizam-se as redes
sociais, as redes de interesse específico, as redes de nicho), que requer ainda
processos de monitoramento (Big Data) e a inter-relação com landing pages
apropriadas para fazer andar o processo
de comunicação e articulação frente a um ou uma gama de objetivos. Além, é claro, da integração com as mídias
tradicionais, pois há e haverá por um bom tempo uma forte interdependência
entre o mundo analógico e o digital, que são um só.
A tendência tecnológica
é reforçada pela demanda da sociedade. A tecnologia, suas ferramentas e
processos vão contribuir para dar vazão às necessidades de uma sociedade muito
mais complexa e fragmentada da que foi regida pelas tecnologias da era industrial.
Esta percepção já é latente na sociedade contemporânea atônita com o contexto e
surpreendida pelos novos processos da informação, comunicação e articulação num
mundo em profunda transformação. Neste
cenário, o do avanço das multiplataformas e suas redes sociais de atuação,
estão contidos também o cloud, a mobilidade e o analytics.
Jornalista da família Mesquita fala sobre a função histórica dos jornais impressos, inclusive o do O Estado de S. Paulo, e das mudanças que a era da internet trouxe. Ele aborda como é possível fazer jornalismo nos novos tempos – entrevista de julho de 2013 transcrita do página 22 da GV
Página 22 – Rodrigo, você acredita na existência de uma crise dos meios jornalísticos provocada pelo descompasso entre a novíssima sociedade do conhecimento, revolucionada pelo digital, e as antigas estruturas da informação ?
Rodrigo – O apogeu da indústria de jornais acontece na década de 1940. A partir daí, este setor da indústria de comunicação social começa a envelhecer. Assim como as plataformas digitais atuais, os jornais também eram plataformas de articulação das comunidades em que estavam inseridos. Alexis de Tocqueville ( filósofo político francês, 1805-1859) aborda, na Democracia da América o papel dos jornais que estavam se estruturando no século 19 nos Estados Unidos. Para Tocqueville, os jornais contribuíam para os cidadãos se sentirem parte de uma comunidade local, que por sua vez fazia parte de uma comunidade maior, que era a nação americana nascendo. O jornal teve durante dezenas de anos o papel de plataforma de articulação das comunidades locais. Veja o caso do meu bisavô, Júlio Mesquita (jornalista, 1862-1927)…
Página 22 – Júlio Mesquita foi o fundador do jornal “O Estado de S Paulo”?
Rodrigo – Não, meu bisavô foi um “self-made man” e não foi o fundador do Estadão. O jornal A Província de S Paulo foi fundado por um grupo de republicanos em 1875 com o objetivo promover a República e a abolição da escravatura. Ele foi levado como colaborador para este jornal por Rangel Pestana (jornalista e político, 1839-1903) no final do século 19. Para os republicanos, o jornal não era um negócio. Era uma ferramenta para se atingir seus objetivos. Depois de a República ter sido proclamada e a escravatura abolida, este grupo de republicanos perdeu o interesse no jornal. Ele não tinha mais nenhum valor para eles.
Meu bisavô, com a ajuda do pai imigrante português semi analfabeto e que escolheu o filho que iria estudar, começou a comprar as ações do jornal até adquirir 100%. Neste processo, partiu para o rompimento dos laços do jornal com o Partido Republicano que o subsidiava. Desde a proclamação da República, o nome do jornal tinha sido alterado para O Estado de S Paulo. Concomitantemente ao rompimento, promoveu uma profunda reforma editorial no jornal e fez uma série de inovações empresariais. Ninguém podia assinar textos no jornal, nem ele, “porque não é nosso, é do público”. Com isso ele indicava que considerava o jornalismo uma atividade coletiva e colaborativa e começava a definir a missão do jornal.
Era um homem além do seu tempo, como fica claro nesta antevisão do que seria colaboração em rede.
Página 22 – E qual era esta missão?
Rodrigo – A missão do O Estado de S Paulo (e de todos os jornais sérios e éticos) era levantar os problemas que preocupavam a comunidade de São Paulo e promover o debate destes problemas pela comunidade. Ele tinha uma frase que considero lapidar, verdadeira até hoje para as empresas jornalísticas e que mostra que suas ideias (de rede) continuam contemporâneas: Jamais sonhei que tinha o direito ou o dever de formar a opinião pública de meu estado. Tudo o que eu fiz na minha vida foi sondar a opinião pública e me deixar levar tranquilo e sossegado pela corrente que me parecia mais acertada.
Um exemplo disso foi a greve operária de 1917, liderada pelos operários anarquistas. O governo criou um comitê de arbitragem, que não chegava a uma solução. Aí chamaram o jornal para arbitrar o comitê de arbitragem. E O Estado de S Paulo ficou do lado dos operários anarquistas porque as condições dos trabalhadores eram desumanas. Nesta época, os jornais estavam tão inseridos na vida das comunidades que podiam representar este papel: o de árbitro de uma crise da comunidade que serviam.
A partir do final da década de 1940, o papel de articulação da sociedade do meio jornal começa a mudar. O jornal deixa de acompanhar proporcionalmente o crescimento da população, começa a enfrentar a concorrência de múltiplas plataformas de mídia, a explosão demográfica e o crescimento desmesurado das cidades, que fazem que o meio jornal comece a se distanciar do seu público. A sociedade vai ganhando um outro grau de complexidade e vai se fragmentando de tal forma que começa ficar difícil para o meio jornal fazer a cobertura jornalística com a mesma amplitude e profundidade do início do século passado até meados da década de 40.
É bom lembrar que desde o final da década de 40 a comunidade científica acadêmica já estava estudando infraestruturas na direção da internet e prevendo a possibilidade de sistemas de comunicação distribuídos. Em 1968, o cientista J.C. Licklider já dizia que, em poucos anos, iríamos nos comunicar melhor através de uma máquina do que face a face.
Página 22 – Mas se um afastamento de sua missão e novas formas de articulação já se formavam há tanto tempo, por que os jornais continuaram com o mesmo modelo?
Rodrigo – Os graves problemas que a indústria de jornais está enfrentando é resultado da sua acomodação. Esta crise não surgiu de repente. Os jornais tiveram o monopólio dos “classificados” das comunidades em que estavam inseridos durante cerca de meio século. Do início do século 20 aos anos 40, eram a Ágora política e comercial das cidades que serviam. Todas as empresas que atingem uma posição monopolista emburrecem. Os administradores das empresas jornalísticas se dedicaram apenas a gerenciar fluxo de caixa, relevando as possibilidades de empreenderem como empresários do setor de comunicação social. A maioria deles não tinha e não tem a visão empresarial dos patriarcas.
E isso ocorre até hoje. Por isso, o que está em risco hoje é o jornal de papel. O papel do jornal, ser um instrumento de articulação para a sociedade, é um espaço que continua aberto para ser ocupado. A nova infraestrutura de comunicação abre espaço para o que chamamos de “jornalismo cidadão” e novos players sem legados. No futuro, todo cidadão que tiver um compromisso com o processo institucional de alguma forma vai estar ligado ao que chamamos de jornalismo. O jornalista profissional será necessário para realizar a filtragem daquilo que tem consistência do que é besteira, bobagem.
Não existem dois mundos hoje. Um analógico, outro digital. O rejuvenescimento e revigoramento da economia analógica depende da evolução da economia digital, que é consequência da evolução da economia da era industrial e do gênio humano. Uma das principais áreas de cobertura jornalística hoje é a própria internet, na medida em que as fontes primárias estão presentes na rede e que o público, a cidadania, está lá num processo de conversação sem fim debatendo seus problemas, ansiedades, sonhos e perspectivas.
Hoje, todas as pessoas e todas as empresas são parte também do setor de informação. Até muito pouco tempo atrás, as empresas tradicionais de informação tinham o domínio da audiência. E qualquer pessoa que, por motivo político, econômico, institucional, comercial, quisesse se relacionar com o público, precisava fazer lobby sobre as estruturas jornalísticas e jornalistas para que a sua informação, a sua mensagem, chegasse ao público. Ou comprava espaço publicitário. Hoje isso não é mais necessário. No futuro, a publicidade e o marketing serão substituídos por um processo de conversação contínuo das empresas, das pessoas, das entidades com o público na Web, na rede. Dentro de muito pouco tempo, não haverá mais barreiras entre conteúdo e mídia. Isso estará inserido nos processos de cada profissional e de todas as empresas, nas redes sociais que elas paulatinamente estão construindo.
Página 22 – E as empresas de informação tem dificuldade em aceitar esta nova realidade?
Rodrigo – O problema dos jornais e jornalistas é que se consideravam (e em alguns casos ainda se consideram) superiores aos mortais comuns e por isso, no início da internet como Web, eles não mergulharam nas peculiaridades da rede. E a principal peculiaridade da rede é que, por meio do algoritmo, ela permite a criação de comunidades sobre comunidades a partir do nada.
Historicamente, os jornais eram plataformas de articulação das comunidades em que estavam inseridos. E contribuíram para a articulação dessas comunidades em torno de ideias e ideais, problemas, questões de consumo, da conversação política. Enfim, o papel do jornal era contribuir para articulação da sociedade para que ela fizesse valer seus interesses frente ao poder público e frente aos poderosos da sociedade. Se os jornais tivessem mergulhado na Web, rede, e procurado entendê-la desde o início, com certeza teriam encontrado caminhos para continuar cumprindo sua missão neste novo ambiente da informação, comunicação, articulação, este ambiente de conversação da sociedade.
Esse papel continua aberto para ser realizado e existem formas de monetizar isso oferecendo novas formas de serviços para pessoas, para empresas e para setores da economia que vão inexoravelmente entrar neste processo de digitalização da economia. As empresas têm que organizar suas redes sociais nas mídias sociais. Elas têm que monitorar sua marca, entender como o público enxerga a empresa, o seu setor por meio da rede. Têm que estabelecer canais de conversação com seu público potencial, seus fornecedores e distribuidores.
O monitoramento se faz através de softwares, os processos de big data. A empresa tem que identificar quem é simpático a ela, saber quais são os problemas que ela enfrenta em relação à distribuição, ao preço, entender como sua marca é vista, cumprir também com seu papel social.
O problema é que as empresas, ainda naturalmente com um pé na velha economia, têm medo do que estão vendo pela frente e não sabem como fazer isso. As agências de publicidade tradicionais também não sabem fazer isso, transferem processos analógicos para o mundo digital, fazendo no máximo buzz, quase um barulho inócuo. Existem, é claro, as exceções, empresas modernas que já estão fazendo isso e que deveriam ser vistas como exemplo.
Se existe participantes de um setor da velha economia que têm cultura para fazer isso são as empresas jornalísticas, desde que tenham humildade para olhar para o papel histórico delas, que é sua capacidade para articular públicos. A notícia, a informação comercial é um meio, não um fim.
Página 22 – Isto está acontecendo?
Rodrigo – Não na dimensão que poderia ocorrer, mas há movimentos nesta direção. O Nieman Journalism Lab, fundação voltada para o jornalismo da Harvard University, tem alguns trabalhos nesta direção. Mas os Estados Unidos é prático demais. Para eles é a indústria do News Print. Pra mim, a notícia não tem sentido por si só, distribuída no etéreo. As empresas não fizeram dinheiro pela sua capacidade de distribuir informação. Numa perspectiva histórica, legitimaram-se, fizeram e ainda fazem dinheiro por causa da sua capacidade de articular públicos. É o conceito do meu amigo Walter Bender, que é uma das minhas premissas sagradas: Notícias não mudam o mundo. Elas nos dão uma nova inteligência e as ferramentas com as quais explorá-la. Notícias não nos dizem o que pensar ou para onde ir. Elas nos ajudam a navegar. Notícias abrem a porta para participação.
É também por isso que os processos de informação, comunicação e articulação na rede, na Web, impactaram e impactam as tradicionais estruturas das empresas jornalísticas e seus modelos de negócios. Invés de procurar um caminho neste novo mundo e mexer na sua estrutura e processos, as empresas jornalísticas estão mandando embora os jornalistas mais experientes e mais caros e contratando mão de obra inexperiente e barata.
A rede permite e fomenta novas formas de relacionamento de capital e trabalho e é sobre isso que todas as empresas (não só as jornalísticas) deveriam estar refletindo. As jornalísticas deveriam pegar diversos grupos de jornalistas experientes e criar condições para que estes pequenos grupos formassem suas ilhas jornalísticas, criassem pequenas empresas voltadas para fornecer notícias sobre um nicho, cobrir um nicho. Subsidiá-los por um período curto. As velhas empresas jornalísticas criariam um canal de relacionamento com eles e juntos desenvolveriam formas de monetização não exclusivas, mas parcerias. Um processo de satelização, consequência na nova infraestrutura da economia: a internet, a web, a rede.
Se você ficar em uma estratégia de cortar custos em função de queda da publicidade que está sendo registrada e que vai continuar sendo registrada, é a morte. Eu acho também que esses sistemas de “paywall” (acesso a conteúdo da internet apenas através de pagamento de uma tarifa) é uma barreira para a missão dos jornais, que vai além do informar. A informação que o jornal distribui tem sentido na medida que é um fator da articulação da sociedade e se você coloca limites se cria uma barreira também para sua atuação.
Faz sentido você ter sistemas de micropagamentos para informação superespecializada e setorizada, para pacotes específicos, mas não para o geral. Empresas que usam “paywall” como Wall Street Journal, Financial Times e New York Times estão fazendo pouco dinheiro e são brands globais na língua dominante. Sou mais pela abertura de novos caminhos trilhados pelo The Guardian, Forbes e outros. A Web é aberta e não adianta lutar contra isso. O núcleo principal da sua atividade não pode ser fechado, o modelo de negócio tem que ser aberto.
Página 22 – Mas de onde virá a receita destas empresas?
Rodrigo – O processo de digitalização da economia é irreversível. As empresas têm que procurar caminhos de monetização em função de serviços de articulação na rede e no processo de digitalização das empresas. Hoje você tem softwares que podem monitorar as informações que estão sendo publicadas nas diversas mídias/ferramentas sociais que estão dentro da internet, como Google+, Facebook, Twitter, Linkedin, Pinterest, Path, Youtube, Tumblr, Orkut etc. Você pode acompanhar as discussões de assuntos específicos ou de determinada indústria ou governo ou entidade, praticamente em tempo real, em cada uma dessas mídias e nas mídias tradicionais que atuam na rede. Por outro lado, estes softwares mostram apenas estatísticas que precisam ser analisadas em função do seu objetivo. E este papel de análise pode ser feito por jornalistas com a contribuição de outros profissionais.
A rede hoje em certa medida é uma balbúrdia. Você tem uma porcentagem muito grande do público, com certeza mais do que 50%, que não consegue fazer distinção entre informação estruturada, relevante, primária ou uma análise fundamentada e com valor da “informação” dos espertalhões que estão fazendo marketing no mau sentido, retrabalhando informações de terceiros sem acrescentar nada, fazendo barulho para pegar vítimas. As tradicionais empresas jornalísticas, com a força de suas marcas e sua relação centenária com a cidadania, deveriam estar oferecendo este serviço também. De monitoramento, de curadoria da rede, de agregação temática e de público. Com isso, se colocariam como um dos vetores do processo de debate e articulação da sociedade na rede.
Enquanto a velha indústria fica parada, veja o Google… Com menos de 15 anos de idade, fatura mais com publicidade que todos os grupos jornalísticos norte-americanos juntos.
Página 22 – E os jornalistas? Qual o futuro para estes profissionais?
Rodrigo – Antes, o profissional de informação se preparava para fazer carreira em uma empresa que o ajudava a expô-lo para o público, ajudava a promovê-lo como jornalista. Agora, ele terá que encontrar seu próprio caminho. A Universidade de Stanford, Columbia e outras nos Estados Unidos estão discutindo como fomentar o empreendedorismo entre os estudantes da área jornalística.
Os novos jornalistas terão que criar sua própria estrutura de trabalho ou manter relações mais abertas com as empresas tradicionais que sobreviverem. As oportunidades são muitas, este campo nunca esteve tão aberto. É um momento de profunda e acelerada mudança. Os profissionais que já percorreram meio caminho de suas vidas na estrutura antiga sentem uma justificada insegurança. Tecnologia é tudo aquilo que inventaram depois que você nasceu. Não está no seu córtex, você não sabe pensar naturalmente com aquilo, não é ainda uma extensão da sua inteligência, das suas possibilidades.
Para quem está começando agora, as oportunidades são infinitas. O futuro do jornalista está no empreendedorismo. E o futuro das tradicionais empresas jornalísticas está no processo de digitalização das empresas de todos os setores, que abre um novo campo de receitas que pode ser tão importante quanto os classificados, o velho marketplace, foi para o jornal de papel. Em outra dimensão, é importante frisar. A Ágora agora é pública. Cada um de nós está no centro do processo na Web, na rede.
Página 22 – Ao criar um um sistema de informações econômico-financeiras em tempo real, o Broadcast, sucesso instantâneo no início dos anos 1990, você previa esta migração do jornal de papel para o eletrônico?
R – Minha visão, ainda no início dos anos 90, era que a empresa jornalística que ia dar certo nesta nova fase seria aquela que tivesse coragem de se “perder na rede”. Quando criei, na Agência Estado, o serviço de informação em tempo real (pregões das bolsas, notícias e análises) Broadcast, a ideia era construir um bom negócio e a plataforma de aprendizado da S.A. O Estado de S Paulo para o mundo das telecomunicações, da computação e do software, para o mundo da economia digital, que batia nas nossas portas.
Em 1992, éramos líderes deste mercado, posição que a Agência Estado ainda ocupa mesmo com a competição de gigantes como Reuters e Bloomberg. Naquela época, desenvolvemos um serviço taylorizado para o mercado brasileiro em relação às bolsas e mercados usados pela maior parte dos agentes do setor financeiro e injetamos no serviço uma competentíssima cobertura jornalística técnica do mercado financeiro e de informações locais de cunho geral que impactavam os mercados. Isso com um preço adequado. A Broadcast era o fuscão envenenado; o rolls royce era a Reuters. Hoje, o rolls royce é a Bloomberg, mas a Broad continua liderando o mercado.
Mas tanto a Broadcast quanto os outros serviços que criamos na Agência Estado estavam estruturados sobre o velho modelo de monetização a partir da sua capacidade de distribuir informação. Quando propus para o Conselho do Grupo Estado o projeto Broadcast, entre os argumentos estava o de que os classificados iriam migrar para o resultado da convergência entre telecomunicações, computação e software. O MIT – Media Lab, foi um dos primeiros centros de think tank do novo cenário que estava se desenhando e eu estava lá, desde o início da década de 90. Em 1997, escrevi um artigo que já previa o desenvolvimento do cenário que estamos vendo hoje.
Em termos empresariais, meu objetivo era vender o sistema Broadcast a partir do momento em que a internet estivesse mais estruturada e a banda larga mais disseminada no Brasil (isso ocorreu em meados dos anos 2000). E colocar o foco no varejo da economia brasileira, se voltar para setores como micro e pequenas empresas, agronegócio, tecnologia, educação. A informação jornalística seria uma cunha para entrarmos com serviços de articulação de setores e mercados no processo de digitalização da economia. A receita viria de processos de gestão de relacionamento e serviços, não da venda de informação.
Era esse o plano porque estava claro para mim que o mercado financeiro é um mercado das empresas que estão nas capitais financeiras do mundo e por isso nasceram globais. Nova York (Bloomberg) e Londres (Reuters). Em termos locais, o mercado brasileiro, é um mercado pequeno. A capacidade de investimento das empresas globais neste mercado é muito maior do que o nosso. Enquanto o mercado de articulação e digitalização do varejo da nossa economia tem um potencial muito maior e tem muito mais a ver com o papel histórico dos jornais: servir como plataforma de articulação da sociedade. A notícia, a informação editorial e a comercial, é um meio, não o fim. Sempre foi assim.
Página 22 – Entendo que você levou adiante seu projeto de criar processos de articulação na rede.
Rodrigo – Sim, desde 2002, quando profissionalizamos a gestão da “S.A. O Estado de S Paulo” e eu saí, desenvolvo projetos de gestão de relacionamento na Web, rede, para empresas, setores e entidades. Começamos em Birigui, com uma rede de colaboração, conhecimento e negócios para a capital do calçado infantil. Perdi dinheiro, mas aprendi muito.
Depois disso, desenvolvemos dezenas de projetos. Entre eles, a plataforma Peabirus, o TEIAmg, maior projeto de processos crowdsourcing do Brasil, a Rede CIM, Pequenas Empresas & Grandes Negócios da Globo, Museu em Rede, O Milagre de Santa Luzia, Raio Brasil, a República Popular do Corínthians entre outros. Um longo caminho de aprendizado, da minha adolescência e meu sonho de ser o repórter dos confins às novas fronteiras do desenvolvimento da sociedade humana, a Web, a rede.
Breve, estaremos lançando novos projetos. Agora, com o objetivo de criar uma empresa de informação aberta na Web, na rede, da qual não seremos donos nem teremos o controle, mas teremos o domínio e a gestão.
Página 22 – Confins, acompanho-o por meio deste blog e outros canais que você mantém na rede. Que objetivos você tem com eles?
Sou jornalista, com uma forte e acentuada tendência para o empreendedorismo. Acho que esta característica por causa das circunstâncias do tempo que vivi e vivemos e por respeito, admiração e amor pelo meu bisavô, meu avô e acima de tudo pelo meu pai, o jornalista Ruy Mesquita. Na S.A. O Estado de S Paulo fiz tudo o que pude para contribuir para a perpetuação da empresa, para abrir um novo caminho no novo sertão, que é a fronteira da Web, da rede. Dei à empresa muito mais do que recebi nos meus quase 30 anos de dedicação exclusiva a ela.
O blog Confins é a minha landing page. Minha formação é em História. Para desenvolver os meus projetos, tive que me debruçar sobre a cobertura jornalística da evolução do ecossistema de informação, comunicação e articulação da sociedade e procurar dominar as mídias/ferramentas que vão surgindo na Web, na rede. Daí, o jornal dos confins, o meu canal no rebel mouse, no google+, no linkedin, no facebook, no youtube, no peabirus, no twitter, no pinterest, no scoop.it, no scribd, no slideshare, no delicious, no instagran e outros. Eles estão mais ou menos interligados e em todos é o mesmo foco de conversação: a evolução do ecossistema da informação… Além desta função, há a do aprendizado para usar estas ferramentas na construção das nossas redes sociais de interesse específico.
Não trabalho sozinho, tenho sócios, somos um time. Eles são mais moços do que eu. Têm mais agilidade e conhecimento para o desenvolvimento dos ambientes de curadoria, agregação, articulação e governança que desenvolvemos, a partir de processos estruturados de monitoramento da rede. O new new new jornalismo. Eu trouxe esta visão que desenvolvi graças a ter “nascido dentro das redações” da “S A O Estado de S Paulo”, de ter sido primeiro sponsor de programas do MIT – Media Lab e depois pesquisador afiliado, durante quase 15 anos, deste que foi naquele tempo a Escola de Sagres dos novos tempos. Além disso, puxo a articulação no mundo físico (analógico) e digital.
Nele, utilizando entrevistas em vídeo de Alvin Toffler, Yochai Benkler e Marshall McLuhan, procuro tecer o quadro do momento da transição de uma era para outra que estamos vivendo.
Alvin Toffler: As nações estão perdendo seu poder relativo… a propagação não só de computadores, como também de outros sistemas de comunicação e redes de todo o gênero, com isso vemos atividades ocorrerem à margem do sistema ou mesmo à margem, em muitos casos, do controle das nações.
Yochai Benkler: A principal mudança que a internet criou é a radical descentralização dos meios básicos de produção de informações e conhecimento e cultura… pela primeira vez desde a revolução industrial estes recursos estão nas nas mãos da maioria da população.
Marshall MacLuhan: Todas as mídias são extensão de alguma habilidade ou capacidade humana, mental ou física. A roda é uma extensão dos pés. O livro é uma extensão dos olhos. As roupas são uma extensão da pele. Circuitos elétricos (a internet, a web, a rede) são uma extensão do sistema nervoso central. A extensão de qualquer um dos sentidos desloca (ou distorce) todos os outros sentidos. Altera o modo como pensamos, o modo como vemos o mundo, e a nós mesmos. Cada vez que uma mudança dessas ocorre, as pessoas mudam.
As redes sociais ainda não têm maturidade para serem tão orgânicas quanto poderão vir a ser. A ética deste novo mundo ainda está sendo gestada no âmago de todos nós. E a expansão da sociedade analógica para sua extensão digital é muito recente.
Abstraindo isso, os fundamentos institucionais, convivemos com o imponderável do antrópico algoritmo das plataformas sociais (FB, twitter, youtube, tumblr, flipboard, google+ etc etc etc), regidas pelos objetivos comerciais de cada uma das empresas que as mantêm.
Como se fosse preciso intrincar um pouco mais o cenário, a maioria dos usuários e mesmo analistas dos fenômenos de articulação do público e da opinião pública por meio da internet confundem ferramentas (FB, twitter, youtube, tumblr, flipboard, google+ etc etc etc) com processos.
Rede social é processo, não as ferramentas que são usadas na estruturação dos processos digitais de conversação e compartilhamento de informação. Verdadeira ou falsa. Os fluxos de informação das redes sociais que participo em função da base das minhas amizades, dos meus interesses, dos meus sonhos, eticamente sustentados.
As redes sociais são tão orgânicas quanto a maturidade digital de quem as utiliza
As redes sociais nasceram quando o homem se tornou um animal gregário e foram se sofisticando conforme a sociedade humana foi evoluindo e se tornando mais complexa. A internet, a rede, exponenciou esta complexidade ao permitir que todos nós estruturássemos nossas redes sociais, a base de relacionamento de cada um de nós (indivíduos, partidos políticos, entidades, setores da economia etc) digitalmente.
Quando e se a imprensa tradicional entender isso e por isso se inserir de forma coerente nos fluxos de informação das redes sociais e criticar com conhecimento de causa a responsabilidade das empresas que mantêm plataformas pelo pandemônio que ajudam a formar nos processos de comunicação contemporânea , graças aos seus algoritmos manipuladores regidos exclusivamente por seus objetivos comerciais, poderá haver um renascimento do Quarto Poder.
“Reconstruir a base sobre a qual os americanos podem formar uma crença compartilhada sobre o que está acontecendo é uma pré-condição da democracia. Esta é a tarefa mais importante da imprensa daqui para frente.
Nossos dados sugerem fortemente que a maioria dos americanos, incluindo aqueles que acessam notícias através de redes sociais, continuam a prestar atenção à mídia tradicional, seguindo as práticas jornalísticas profissionais e cruzando referências com o que lêem em sites partidários com o que lêem em sites de mídia de massa.
Para conseguir isso, a mídia tradicional precisa se reorientar, e não pelo desenvolvimento de conteúdos virais para competir no ambiente de mídia social, mas por reconhecer que ele está operando em um ambiente de propaganda e rico em desinformação.
É este, não os adolescentes da Macedônia ou ou o Facebook, o verdadeiro desafio dos próximos anos. Vencendo este desafio poderá conquistar uma nova era de ouro para o Quarto Poder”.
Guia para a Tecnologia Publicitária (Guide to Advertising Technology)G
(por Elizabeth Anne
Watkins, Columbia Journalism Review)
Resumo
A tecnologia publicitária
gerou uma imensa infraestrutura técnica. As tecnologias e motivações da publicidade
são a base da economia da internet. Os sites jornalísticos não são exceção. As
informações que procuramos sobre o mundo estão apoiadas e são formatadas pela
publicidade e suas necessidades. Os jornalistas precisam saber mais sobre essas
tecnologias, como elas funcionam e como elas influenciam a prática, a
distribuição e a percepção do jornalismo.
A tecnologia publicitária
pode ameaçar a reputação e a viabilidade econômica dos publishers em diversas
maneiras. A chamada “ad tech” promove um tipo específico de engajamento com a
audiência, e suas estruturas de incentivo comprovadamente afetam o modo como as
notícias são produzidas, reduzindo a confiança dos leitores que os publishers
estejam oferecendo uma cobertura jornalística objetiva. O fluxo de dados dos
usuários via ad tech por sistemas não-transparentes, e em alguns casos com a
instalação de malware nos equipamentos dos leitores, ameaça a privacidade e
segurança dos leitores e pode danificar ainda mais a imagem dos publishers. A
lentidão no carregamento e a distração incômoda dos anúncios tipo display pode
reduzir o desempenho dos sites de notícias e afugentar os usuários, que migram
para “jardins murados” como aplicativos privados ou plataformas de redes
sociais. Isso pode desviar o público para longe dos outlets de jornalismo
profissional, deixando a audiência exposta a operações de manipulação
informativa, em padrões que os acadêmicos e legisladores estão apenas começando
a entender. As políticas sobre publicidade em redes sociais ameaçam borrar a
fronteira entre jornalismo e propaganda política, e podem incentivar os
chamados “influenciadores” a ignorar totalmente os publishers e criar seus
próprios conteúdos. Empresas de busca, por sua vez, têm sido acusadas de
explorar seu poder sobre como os usuários acham e acessam as informações.
Para produzir este guia,
partimos de uma série de perguntas, incluindo: qual é a relação entre
publishers jornalísticos e anunciantes? O que está mudando? O que está em
disputa? E como o sistema atual de publicidade, autores, leitores e
equipamentos influencia as notícias?
Principais destaques:
A publicidade foi essencial para o desenvolvimento do jornal moderno e da
reportagem objetiva. As mensagens publicitárias de hoje, transmitidas por meio
de um sistema interconectado de softwares, servidores de dados, agência de
marketing e mercados de dados, ainda sustentam a maior parte da produção de
notícias, mas são pouco estudadas nos cursos tradicionais de jornalismo.
A dependência dos publishers em relação à ad tech facilita a coleta e
movimentação de dados dos usuários por meio de sistemas opacos, o que pode
ameaçar a confiança dos leitores nas notícias.
O ad tech e suas métricas comprovadamente alteram a produção interna das
notícias, o que cria um conflito com os compromissos clássicos do jornalismo
com a cobertura objetiva.
O mercado hipereficiente de anúncios programáticos fez os preços
despencarem, reduzindo o faturamento para os publishers.
O ad tech é afetado por fraudes como visualização por “bots” (softwares
que imitam usuários humanos), o que faz com que muitos anunciantes transfiram
seus investimentos publicitários para as redes sociais e sites de buscas,
reduzindo ainda mais o faturamento dos publishers.
Os efeitos negativos do ad tech na experiência do usuário (anúncios
visualmente invasivos, lentidão no carregamento e consumo da franquia de dados
móveis do usuário) pode levar os leitores (e o dinheiro relacionado com sua
atenção) para longe dos sites jornalísticos, dando preferência para apps privados
e plataformas sociais.
A relação entre publishers e redes sociais representa uma dinâmica
assimétrica de poder, e já se sabe que ela afeta a capacidade dos publishers em
atingir as audiências, especialmente no caso dos publishers locais.
O controle das plataformas sobre a exibição de conteúdo jornalístico
levou alguns publishers a recorrer ao uso de influenciadores, o que por sua vez
estimula o crescimento de firmas que oferecem conteúdos produzidos sob medida e
com precisão de algoritmos especificamente para influenciadores. As plataformas
estão tentando impor normas sobre a distribuição de conteúdos por
influenciadores, mas isso pode ser uma tarefa difícil.
Os mecanismos publicitários das redes sociais, especialmente o
“hyper-targeting”, podem ser transformados em armas por agentes mal
intencionados.
Todos os jornalistas, de repórteres a editores, precisam se manter
informados sobre os mercados dinâmicos de produção e consumo de notícias e
informações.
Introdução: por que os jornalistas precisam saber
como funciona o ad tech?
Imaginem uma jovem
chamada Molly, que trabalha como gerente de eventos em Chicago. Durante o
planejamento de um longo seminário, ela e seus colegas comentam a respeito da
“preguiça” pós-almoço que geralmente ocorre nesse tipo de evento. Para manter o
pique dos debates, Molly decide encher o auditório com doces. Ela usa seu
laptop e entra no site Amazon.com para comprar vários pacotes de doces. No dia
seguinte, Molly percebe que a Amazon está sugerindo vários outros tipos de
doces para ela escolher. Rapidamente, porém, ela vê que sua vida digital se
transformou em uma terra de doces. Balas e pirulitos aparecem nas páginas de
quase todos os sites que ela visita. Naquela noite, procurando informações
sobre um pronunciamento presidencial importante, ela visita vários sites
jornalísticos respeitados e percebe com surpresa que mesmo os artigos mais
sérios estão acompanhados de anúncios de balas de goma e caramelos.
A publicidade encompassa
a economia da internet. “Tecnologia publicitária” é um termo para o sistema de
softwares, servidores de dados, agências de marketing e mercados de dados que
facilitam a venda de dados dos usuários e a exibição (display) de mensagens
publicitários para os usuários da internet, incluindo sites de buscas, redes
sociais e aplicativos. A grande maioria dos sites e das plataformas sociais são
sustentados por ad tech. Os sites jornalísticos não são exceção. O problema é
as escolas de jornalismo estão dando pouca atenção à economia política da
publicidade nos sites jornalísticos. A experiência do usuário em diferentes
aparelhos, a perda de controle sobre o que é exibido nos sites dos publishers e
como essa perda pode afetar a reputação da marca estão entre os temas pouco
abordados nos currículos do jornalismo profissional. É uma tendência
preocupante, já que o ad tech pode influenciar a produção, distribuição e a
percepção do jornalismo, tanto em aspectos óbvios como sutis.
As redes sociais em
especial causaram uma ruptura no controle que os publishers costumavam ter
sobre as informações e publicidade, e o ambiente com múltiplos aparelhos
inverteu a primazia pela atenção dos leitores, que foi por muito tempo uma
exclusividade dos publishers. Os experimentos com formatos de anúncios borraram
a antes clara linha divisória entre os departamentos editorial e comercial das
empresas jornalísticas. A ambiguidade é hoje a norma. Jill Abramson,
ex-diretora executiva do New York Times, faz uma consideração sobre seus
valores com um senso de nostalgia “Talvez eu fosse linha-dura demais, mas eu
acreditava na muralha (entre os lados comercial e editorial do jornal)”. Este
“Guia para Tecnologia Publicitária” pretende explicar como tudo isso aconteceu
e o que representa para a prática de jornalismo hoje, oferecendo uma educação
útil na história e política econômica das tecnologias de publicidade digital. O
guia inicia-se com uma breve história da publicidade moderna no jornalismo e
uma revisão dos fundamentos do marketing. A seguir, são apresentadas descrições
técnicas sobre o funcionamento dos anúncios de display digitais, os contornos
do espaço do ad tech e o impacto material que o ad tech tem sobre a experiência
do usuário. O estudo então examina os padrões resultantes no consumo de
notícias e anúncios, como os consumidores e as forças de mercado reagiram
contra a publicidade de display digital e como a indústria de marketing reagiu
investindo pesadamente em plataformas sociais e sites de busca.
O estudo também aborda
como o ad tech cria estruturas de incentivo, que podem influenciar o modo como
repórteres e editores pensam a respeito da produção de notícias, e como as
tecnologias publicitárias ameaçam o relacionamento entre publishers e leitores,
incluindo reputação e marcas jornalísticas. O fato de que as instituições
jornalísticas, que estabeleceram um compromisso de informar os cidadãos em uma
democracia livre, estejam participando conscientemente do sistema técnico da
publicidade – que comprovadamente viola a privacidade dos leitores – é um sério
dilema ético. A tecnologia e a sociedade estão misturadas e constroem uma a
outra, e os jornalistas precisam ter compreensão de ambas para apresentar uma
narrativa que nossa democracia exige.
Por fim, é relevante
observar que este relatório é um item de biblioteca, o que significa que suas
fontes primárias não são entrevistas, mas reportagens do setor de tecnologia,
literatura acadêmica nos campos de marketing e estudos de jornalismo, manuais
de marketing e “cases” de faculdades de administração.
O ad tech é um campo que
se desenvolve muito rapidamente, fica portanto um alerta que os detalhes podem
estar sujeitos a mudanças. As lições políticas e filosóficas, contudo, devem
continuar relevantes.
Tipos de anúncios: Display, Branded, Targeted, e
Programmatic
Do
“branding” ao “targeting”.
Para entender o contexto
do mundo onde anúncios display são comprados e vendidos, é útil apresentar um
pouco da história dos principais temas da publicidade nos últimos 30 anos.
Na segunda metade do
século 20, o principal foco da indústria publicitária era o “branding”.
Anúncios de branding são geralmente grandes mensagens visuais, de alto impacto,
que associam um produto a uma série de valores. Os consumidores que se sentem
representados por esses valores, ou que querem indicar aos outros que acreditam
nesses valores, podem ficar inclinados a comprar um produto dessa empresa. As
campanhas de branding geralmente são apresentadas em comerciais de televisão,
já que a TV é considerada a melhor mídia para branding. Se você já viu um
comercial de cerveja que é mais focado em festas, garotas e diversão do que na
cerveja em si, então você sabe o que é um anúncio de branding.
Os anunciantes tendem a
apostar no branding quando há vários concorrentes semelhantes de alta qualidade
no mercado.
Empresas como Procter
& Gamble, General Foods e Unilever desenvolveram a disciplina do
gerenciamento de marcas – o marketing como conhecemos hoje – quando perceberam
que os níveis de qualidade dos produtos oferecidos pelos concorrentes haviam
aumentado. Um “brand manager” seria responsável por dar ao produto uma
identidade que o destacasse em meio a concorrentes praticamente
indistinguíveis.
Um bom exemplo disso é
Coca-Cola versus Pepsi. Os dois refrigerantes são quase indistinguíveis como
produtos – portanto, as empresas investem altos valores em campanhas de
branding para torna-los diferentes um do outro. A Coca-Cola busca associação
com valores como união, comunidade internacional e felicidade. Já a Pepsi busca
qualidades como progressismo, energia e juventude.
A percepção da marca e
dos valores da marca, creem os anunciantes, podem influenciar as decisões de
compras dos consumidores. A Procter & Gamble, que fabrica itens de consumo
doméstico e é uma das maiores anunciantes do mundo, anuncia propositalmente
grupos de produtos diferentes, como o sabonete Ivory, o detergente Tide e sabão
para lava-louças Dawn dentro de uma “família de marcas” unificada. O diretor (Chief
Brand Officer) Marc Pritchard disse que “descobrimos que muitas vezes quando as
pessoas sabem que uma marca é da P&G, elas se sentem melhor a respeito da
marca. E quando sabem que a P&G tem todas essas marcas, elas se sentem
melhor a respeito da P&G”. Essa abordagem é exemplificada pela publicidade
da P&G durante os Jogos de Inverno de 2010, que combinou 18 produtos diferentes
da P&G em uma única bandeira, em vez de focalizar nos produtos individuais.
Em meio a esse ambiente
de publicidade baseada em branding, os anúncios digitais do formato display
estrearam no final dos anos 1990. A publicidade em display são anúncios
retangulares que aparecem nos sites, visitados em um computador desktop, tablet
ou smartphone. Eles existem em vários formatos, classificados pelo grupo
industrial Interactive Advertising Bureau (IAB) em função da relação
altura/comprimento, como Horizontal 2:1, Horizontal 4:1, and Vertical 1:2.,
como mostrados na figura 1.
(Figura 1: Tamanhos
aceitáveis de anúncios display para cada tipo de aparelho, segundo a definição
do Interactive Advertising Bureau)
Supostamente, os anúncios
display devem seguir os padrões e normas definidos pelo IAB. À medida em que a
atenção do consumidor se reparte entre smartphones e tablets, além da TV,
rádio, revistas, jornais e mídia exterior, os anunciantes tiveram de competir
por esse recurso valioso e cada vez mais escasso, o que o mercado chama de
“economia da atenção”. Dentro desse ambiente competitivo, a publicidade mudou
seu foco do “branding” para o “targeting”.
As campanhas de branding
são criadas para chamar a atenção de uma grande parcela da população. Os
anúncios de targeting funcionam de modo oposto: são criados para serem os mais
atraentes possíveis para grupos específicos de pessoas. Para entender como o
targeting funciona, é preciso examinar quais dados dos consumidores são
coletados, e como esses dados são coletados.
Inicialmente, os sites
captam dados sobre você a partir do programa de navegação e de algo chamado de
“tracking cookies”. Os tracking cookies são fragmentos de códigos em linguagens
como HTML e Javascript que os sites inserem no programa de navegação (browser) do
usuário. Esses pedacinhos de código monitoram os usuários, registrando e
enviando ao site original informações sobre os sites que você visita e as
coisas que você compra. Os sites reúnem essas informações em duas categorias:
1) dados comportamentais sobre os tipos de sites que você visita e quanto tempo
fica conectado neles, e se você comprou alguma coisa; e 2) dados demográficos
que eles deduzem a partir do comportamento online, como sua idade, nível
educacional, estado civil, faixa de renda e interesses pessoais. Essas
informações são então usadas para gerar anúncios para os usuários segundo dois
parâmetros: 1) o que você faz (quer dizer, targeting comportamental) e 2) quem
você é (targeting demográfico).
A coleta de dados também
pode ocorrer no hardware. Um exemplo é sistema de coleta de dados a partir do
hardware que ocorre nos telefones equipados com o sistema Android do Google. Um
jornalista do The Guardian requisitou uma cópia do arquivo de dados que o
Google tinha sobre ele, e descobriu que o Google tinha salvado todos os termos
já buscados por ele (cerca de 90.000), todas as imagens baixadas, todos os
sites acessados, todos os eventos listados no Google Calendar, incluindo os
horários desses eventos, e cada item salvo no Google Drive. O jornalista também
havia conectado seu medidor FitBit ao Google, assim o Google tinha o registro
de cada passo dado em corridas, sessões de ginástica, yoga e meditação. E como
o repórter tinha um telefone com o sistema Android, o Google tinha todas as
fotos que ele havia tirado com o celular, incluindo os metadados sobre a
localização e data da foto.
O Google tornou o uso
desses dados no targeting transparente para os usuários do seu navegador
Chrome. Todos os usuários do Chrome podem acessar uma página chamada “ad personalization”
e examinar os atributos baseados em interesses e dados demográficos que foram
coletados e processados pelo Google.
(Figura 2: atributos de
targeting de anúncios baseado em dados da autora, coletados pelo Google)
Essas informações não são
úteis apenas para direcionar os anúncios especificamente para você, mas também
para direcionar anúncios para pessoas como você. Os sites agregam todos os
dados de seus usuários para criar um instantâneo dos dados demográficos dos
visitantes, incluindo faixa média de idade, etnicidade, locais de residência e
trabalho, faixa de renda e nível educacional. Esses dados de usuários, chamado
de “inventário”, são então usados para vender espaços publicitários para marcas
e anunciantes por meio de agências de publicidade. A métrica usada na compra de
inventário é a “impressão”, o que significa quantas “impressões” um anúncio
registrou entre os usuários que o viram. As impressões são vendidas em CPM, ou
“custo por mil visualizações” – um termo que veio da publicidade de TV medida
pela firma de audiência Nielsen, apesar das impressões de anúncios digitais
terem qualidades muito diferentes. Os anunciantes geralmente estabelecem seus
alvos de impressões junto com o valor a ser investido na campanha: “queremos
atingir um número Y de impressões, e vamos gastar X para isso”.
Os publishers podem
oferecer sistemas de preços alternativos baseados em outras ações dos usuários
(além das meras impressões), como o CPC (“cost-per-click”, quando um usuário
clica em um anúncio) ou CPA (“cost-per-action”, quando o usuário clica no
anúncio e também realiza uma compra)
2- Publicidade programática
Voltando à história da
publicidade, os anúncios online explodiram nos anos 1990 e 2000. Os sites
estavam vendendo um volume cada vez maior de impressões para um número
crescente de anunciantes. Rapidamente, os publishers tiveram de lidar com
bilhões de impressões e milhares de anunciantes. Nesse espaço ruidoso, surgiu
uma nova camada de prestadores de serviços chamados “ad networks” (redes de
anúncios). As ad networks são empresas que agregam sites que tem inventários
semelhantes em grupos, facilitando para os assinantes a compra de anúncios.
Desse modo, os anunciantes podem comprar grandes volumes de anúncios para
exibir para usuários semelhantes em sites diferentes, e atingir suas metas de
impressões de modo mais eficiente
Figura 3
Toda essa agregação, e o
número astronômico de impressões unificadas, logo criou uma situação onde os
anunciantes não sabem onde seus anúncios estão sendo exibidos ou quem os está
comprando. Rapidamente, os compradores de anúncios passaram a buscar mais transparência
a respeito do que estavam comprando com o dinheiro que investiam. Isso levou à
criação de “ad exchanges” (bolsas de anúncios): plataformas abertas para
comparar os preços e qualidade das impressões, para então compra-las. A figura
3 mostra o ecossistema de ad exchanges e ad networks. Os anunciantes são
representados por uma barra verde à esquerda, e os publishers por uma barra
azul à direita. Entre eles, é possível ver o enorme número de empresas de
serviços que formam o cenário do ad tech, incluindo agências de publicidade,
compradores de mídia e corretores de dados.
Você pode ver camadas
adicionais de empresas, que executam serviços a partir dos dados dos usuários
(todos aqueles dados comportamentais e demográficos coletados por meio dos
cookies). Esses serviços incluem otimização (testar e analisar os dados de modo
mais profundo para aperfeiçoar o targeting); retargeting, que é direcionar
anúncios para o usuário depois que ele sai do seu site (lembram-se de Molly
vendo anúncios de doces depois que saiu do site da Amazon.com?) e “ad
attribution” – executar análises de dados dos hábitos de compras do usuário
para determinar qual anúncio o levou até a efetivação da compra. Um corretor de
dados no setor de ad exchange explicou desse modo os seus serviços para os
anunciantes:
“Podemos desenvolver um
segmento de audiência sob medida, a partir dos modelos dos visitantes de seu
site (isso é chamado “look-alike modeling”); encontrar residências que têm a
maior probabilidade de comprar determinados produtos ou serviços (“MRI
Lifestyle Clusters”); se estiver patrocinando uma página na AOL, retarget os
consumidores que visitaram a página (“Sponsorship LeadBack”); encontrar sua
audiência feminina ideal nos sites com maior probabilidade de visitas (“Subnet
Targeting”), encontrar mulheres que estão procurando por informações sobre moda
ou casas e jardins e direcionar targets específicos para residências onde há
mulheres (“Age/Gender Targeting”)
É nesses ad exchanges que
ocorrem os lances programáticos em tempo real. Os lances programáticos em tempo
real são leilões ao vivo disputando a atenção do usuário, que ocorrem em
milissegundos toda vez que um anúncio é carregado na página. O processo começa
assim: como no site de leilões eBay, os publishers disponibilizam um inventário
de anúncios (medido em impressões de usuários) em um bloco de leilão. Os
anunciantes fazem lances por esse inventário usando programas de computador
(daí o termo “programático”). Os anunciantes dizem aos programas que tipo de
inventário comprar baseados em vários parâmetros. Os programas fazem lances
altos ou baixos, dependendo da adequação do inventário para a campanha
publicitária do anunciante, em função do orçamento destino para ela. Os lances
ocorrem em tempo real, porque esses leilões ocorrem toda vez que um usuário
abre uma página da web, no tempo de milissegundos.
3- Anúncios display em sites de notícias
Organizações
jornalísticas publicam padrões descrevendo os formatos que os anunciantes podem
esperar ver nas páginas da web, e também os termos e condições que os
publishers estabelecem para os anunciantes. Em termos de formatos, essas
indicações incluem templates visuais. No guia “Digital Advertising Production
Format Guide” do britânico The Guardian, esses templates incluem formatos de
anúncios como “Cascade,” “Expanding Billboard,” “Fabric Video,” “Filmstrip,”
“Focus,” e “Sliding Doors”. O Guardian apresenta imagens para os anunciantes
mostrando como os anúncios aparecerão nas telas de diferentes aparelhos. O
“Media Kit” do New York Times também oferece um pacote completo de formatos e
imagens de anúncios nos formatos disponíveis. (Figuras 4 e 5)
Figura 4: Especificações
de formatos de anúncios do The Guardian
Figura 5: as
especificações de formatos de anúncios do New York Times
Os termos e condições
especificam o que é esperado dos anunciantes. Alguns publishers incluem
exigências sobre a “veracidade” dos próprios anúncios (os “Termos e Condições”
do The Guardian especificam que os anúncios devem ser “legais, decentes,
honestos e confiáveis”). Outros tentam estabelecer relação de boa-fé quanto à
confiabilidade das especificações técnicas dos anúncios. O Guardian diz em seus
Termos e Condições que “todos os anúncios enviados para publicação online devem
estar livres de quaisquer vírus, adware, malware, bit torrents, e nenhum
anúncio deve causar efeitos adversos ao funcionamento do website”. O Media Kit
do New York Times estabelece que “todos os tags de terceiros e tecnologias
auxiliares servidas pelos tags devem ser compatíveis com SSL (HTTPS)”. Apesar
desses requerimentos, foram detectados problemas criados tanto pela
infraestrutura técnica da publicidade como pela economia política na qual essa
infraestrutura está inserida.
A influência da publicidade nas notícias: inchaço,
cliques e bots
O ecossistema do ad tech
apresenta várias questões para a produção, distribuição e consumo de notícias.
Em primeiro lugar, ele tem impacto material sobre a experiência do usuário. Em
segundo, o ad tech cria estruturas de incentivos, que podem influenciar o modo
como repórteres e editorem pensam sobre a produção jornalística.
i. Usabilidade e inchaço de anúncios
o Wall Street Journal
recentemente informou que a publicidade na era digital arrasta o peso da
história: os anúncios digitais estão sobrecarregados com a mentalidade
ultrapassada de publicitários que cresceram na era do branding. Ideias de
anúncios com imagens em grandes formatos que funcionavam bem na televisão, mas
agora estão sendo injetadas em minúsculos anúncios digitais ou contribuem para
formas mais invasivas de publicidade online, como as mensagens “roadblock”, que
ocupam a tela inteira por alguns segundos e atrapalham a experiência do
usuário.
Além de prejudicar a
qualidade da experiência do usuário, a infraestrutura técnica dos anúncios
digitais reduz o desempenho dos browsers. Basta lembrar de todos aqueles
cookies embutidos nos anúncios, além das inúmeras transações de alta
complexidade técnica dos leilões programáticos em tempo real, rodando milhões
de linhas de código e enviando e recebendo instruções de milhares de servidores
a cada milissegundo. Isso sobrecarrega os programas de navegação, tornando os
sites de notícias mais lentos e atrapalhando ainda mais a experiência do
usuário.
Em 2015, um estudo do New
York Times descobriu que a homepage do Los Angeles Times tinha 5,7 megabytes de
conteúdo. Porém, o conteúdo jornalístico chegava a apenas 1,6 megabyte – quase
73% do total dos dados enviados para os usuários eram devidos aos anúncios.
Isso tornava muito ruim a visita ao site, tanto em termos de tempo de
carregamento (os anúncios aumentavam em sete segundos o tempo de carregamento
da página, um aumento de 175% em relação ao normal) como de custos para os usuários,
especialmente aqueles que acessavam a página em um smartphone ou tablet – que
são os aparelhos cada vez mais usados para acessar notícias. Desde 2015, 99 dos
110 maiores sites jornalísticos tinham mais visitantes usando aparelhos móveis
do que desktops para acessar suas páginas. Algumas operadoras de telefonia
(como a AT&T e Verizon nos EUA) cobram tarifas se você ultrapassa a
franquia de dados contratada. Desse modo, sites com inchaço de anúncios não
apenas demoram mais para carregam, eles deixam as contas de telefone e internet
mais caras para o usuário. Na verdade, os leitores que usam pacotes de dados
móveis estão pagando em tempo e dinheiro para ver anúncios que cobrem ou
atrapalham a leitura do conteúdo jornalístico que eles estão tentando ler.
O targeting também
modifica o mundo que as pessoas veem online porque os anúncios são direcionados
para audiências específicas, o que significa que algumas pessoas verão
mensagens diferentes de produtos e serviços. O professor Joseph Turow da
Universidade da Pennsylvania descreveu esse processo no The Atlantic:
“Considerem uma família
fictícia de classe média com pai, mãe e três filhos. Os pais Larry e Rhonda
estão recebendo anúncios de financeiras populares e de empréstimos consignados.
E Larry percebe com tristeza que os sites de automóveis que ele visita mostram
artigos e anúncios sobre carros populares ou modelos usados. Sua amargura
aumenta quando ele comenta com sua chefe sobre a crise econômica que anda vendo
na web. Surpresa, ela diz que visita os mesmos sites de automóveis e tem a
impressão oposta: muitos dos artigos são sobre os modelos alemães mais recentes
e um site até ofereceu um cupom para um test-drive em uma revendedora perto de
sua casa”.
ii. Ad tech, privacidade e segurança
Além dessas questões de
usabilidade, economia e targeting, a tecnologia publicitária também apresenta
dilemas de privacidade e segurança. Mesmo que um publisher exija que o anúncio
digital não contenha malware, a complexa infraestrutura técnica da publicidade
fez com que sites jornalísticos publicassem anúncios com programas nocivos para
os leitores.
Em 2009, o New York Times
foi vítima de um golpe chamado “malicious ad swap”, onde um anunciante que era
reconhecido como legítimo passou subitamente a enviar malware para os leitores.
A BBC e o New York Times também enviaram “ransomware” aos leitores (programas
embutidos em anúncios que procuram brechas no computador do usuário e instalam
softwares que travam a máquina, que depois só pode ser destravada mediante
pagamento em bitcoins). Em outro caso de anúncios em sites jornalísticos
invadindo a privacidade dos leitores, o site do canal Showtime da rede CBS foi
flagrado “minerando” bitcoins por meio das máquinas dos usuários. O caso foi
explicado em uma reportagem do The Guardian, com o título “Ads Don’t Work So
Websites Are Using Your Electricity to Pay the Bills”:
“O serviço americano de
streaming Showtime estava enviando códigos para minerar criptomoedas nas
máquinas dos usuários – as criptomoedas, como o bitcoin e seus sucessores,
funcionam por um sistema de “mineradores”, que competem para resolver complexos
problemas de computação em troca de uma recompensa. Esses problemas exigem uma
grande capacidade computacional e também consomem um grande volume de
eletricidade. O código malicioso contornava esses problemas, fazendo o usuário
pagar a conta de energia elétrica, mas a recompensa ficava com o site”.
Joe Stewart, diretor de
pesquisas sobre malwares na empresa de serviços de segurança SecureWorks
comentou que “o desenvolvimento de anúncios multimídia, mini-aplicativos e
ferramentas de redes sociais está superando rapidamente a capacidade de reação
para a segurança que deve existir nesses aplicativos”.
Todas essas ameaças à
experiência e privacidade do usuário podem colocar em risco a confiança que os
leitores depositam nos sites jornalísticos. Dessa forma, não é surpresa que as
tecnologias publicitárias apresentem um sério risco para a reputação das marcas
jornalísticas. Além disso, as
demarcações do ad tech sobre o que é valioso na economia da atenção podem
alterar as práticas profissionais e organizacionais do jornalismo.
iii. Notícias? Ou produtos geradores de renda?
Além das questões sobre
usabilidade e privacidade, os incentivos e infraestruturas do ad tech podem
incitar as organizações jornalísticas a produzir e distribuir determinados
tipos de notícias. As economias de escala ditadas pela publicidade significam
que o dinheiro dos anúncios só se torna tangível quando um número imenso de
pessoas vê as mensagens. Investigações jornalísticas e estudos acadêmicos
realizados em redações mostraram que os repórteres e editores se sentem
pressionados para produzir notícias e tomar decisões operacionais segundo as
demandas das estruturas e métricas da publicidade.
À medida em que a
indústria de publishing adota funções, rotinas e métricas herdadas do setor de
tecnologia, bem como da área de vendas de anúncios, mais decisões orientadas
por essas métricas estão afetando o modo como as notícias são distribuídas e
consumidas.
As métricas de
engajamento medem o grau de envolvimento de uma audiência com o site. Isso
inclui cliques (quantas pessoas clicam nos anúncios do site), hits (pageviews),
sessões (tudo que um leitor faz enquanto está visitando o site), uniques
(número de visitantes únicos no site) e muito mais. Mesmo as palavras “artigo”
e “conteúdo” denotam valores e prioridades diferentes na produção de notícias.
Enquanto a palavra “artigo” é usada no jornalismo com o sentido de um
compromisso jornalístico para informar o público com uma cobertura objetiva, a
palavra “conteúdo” vem do setor de tecnologia e indica o papel da palavra
escrita dentro de uma infraestrutura maior de transmissão de conteúdo criado para
metas específicas, como aumentar o engajamento e gerar faturamento.
O Columbia Journalism
Review escreveu extensamente sobre essas motivações concorrentes em sua
cobertura sobre a saída de Jill Abramson do comando do New York Times em 2014,
e a chegada de seu sucessor Dean Baquet. O CRJ relatou que Baquete acredita que
a tradicional “muralha” entre as áreas comercial e editorial do Times deve ser
derrubada para garantir a precária sobrevivência do jornal: “Baquet…declarou
secamente que a tradicional divisão notícias-publicidade se tornou um luxo que
o Times não pode mais se permitir. Para conseguir vencer, disse ele, é
necessária a cooperação da área comercial”. Jim Abramson, porém, disse o
contrário: “Eu não queria que a energia de nossos jornalistas fosse focalizada
em produtos geradores de faturamento”.
Angele Christin, estudiosa
de comunicações em Stanford, realizou um estudo em uma redação nos Estados
Unidos e outra na Europa, e descobriu que tanto repórteres como editores
internalizam e reagem aos números de analytics e métricas da publicidade, e aos
programas de engajamento da tecnologia. “Programas de engajamento” (“engagement
programs”) são softwares, como o popular ChartBeat, que medem e exibem métricas
de engajamento.
Christin descobriu que,
embora as respostas não fossem exatamente as mesmas, nenhuma das duas redações
estava imune à influência dos programas de engajamento. Repórteres e também
editores levavam os números dos programas em consideração ao tomar decisões
sobre que tipo de matérias e reportagens escrever, e como gerenciar, incentivar
e promover repórteres:
“Web analytics são usados
por alguns editores como indicadores de desempenhos na administração de
pessoal, especialmente na hora de decidir como promover e compensar os
jornalistas. Em vários sites de notícias em Nova York e Paris, essa correlação
entre faturamento e tráfego é ainda mais clara: os redatores são ‘pagos por
clique’, uma percentagem do faturamento publicitário que seus artigos atraem.
Eles também podem receber bônus substanciais quando seus artigos são amplamente
compartilhados nas redes sociais”.
É uma mudança dramática
em comparação com as gerações anteriores de jornalistas, que escreviam
desejando a aprovação de seus pares ou prêmios por reputação.
O YouTube fornece um
exemplo claro de como as métricas de engajamento mudam o tipo de conteúdo que é
incentivado e distribuído algoritmicamente pela economia da atenção. O crítico
de mídia Zeynep Tufekci escreveu sobre uma investigação do Wall Street Journal
que mostrou que o algoritmo de recomendações do YouTube empurra os espectadores
para vídeos mais extremos, contribuindo para a radicalização dos usuários:
“O que faz com que as
pessoas fiquem grudadas no YouTube? O algoritmo do site parece ter concluído
que as pessoas são atraídas por conteúdos mais extremos do que o ponto de
partida, ou vídeos incendiários de modo geral… o Wall Street Journal realizou
uma investigação sobre o conteúdo no YT e descobriu que o site de vídeos
costuma oferecer vídeos de extrema-direita ou extrema-esquerda para usuários
que geralmente veem vídeos equilibrados de notícias, e que essas tendências
extremistas eram evidentes em uma grande variedade de materiais. Se você
procurasse informações sobre vacinação contra gripe, o site recomendaria vídeos
de conspiração anti-vacinação”.
Os jornalistas devem
refletir sobre a relação entre publishers e anunciantes, as questões de
usabilidade e privacidade apresentadas pelo ad tech, como as estruturas de
publicidade incentivam determinadas decisões operacionais e organizações nas
redações, e se é ainda razoável esperar que a publicidade financie o
jornalismo. Com isso em mente, vamos nos concentrar em um dos agentes neste
sistema que drena dinheiro dos anunciantes e dos publishers: a fraude.
iv. Fraude e bots
Apesar dos algoritmos
sofisticados, complexos sistemas técnicos e uma ampla variedade de firmas de
serviços, a indústria publicitária é marcada pela fraude. O redator
publicitário Akit Kohli observa que “a fraude na publicidade é geralmente pela
criação de um tráfego falso de anúncio, usando sites de fachada e outros mecanismos
fictícios para apresentar anúncios que não são de fato vistos pelos
consumidores”.
O chamado “bot viewing” é
uma reclamação frequente. Os bots são programas que realizam tarefas
automatizadas na internet (“bot” vem da palavra “robot”, robô, que tem origem
na palavra checa para “trabalho”). “Bot viewing” ou “bot traffic” ocorrem
quando esses programas são usados para imitar usuários e inflar os números de
audiência. Esses programas e seus serviços estão facilmente disponíveis para
compra na internet. Uma busca no Google por “viewing bots” incluiu um serviço
para pessoas que querem ampliar a audiência de seus próprios vídeos no YouTube
(figura 6)
Figura 6
Esses bots são usados
para enganar os anunciantes, fazendo-os pensar que milhões de pessoas clicaram
em um anúncio de vídeo, quando na verdade parte desse engajamento não era
humano. Alguns bots criados na Rússia são capazes de copiar publishers, criando
cópias de sites jornalísticos para furtar dinheiro dos anunciantes.
Enquanto os anunciantes
pensavam estar anunciando em websites reais, na verdade eles estavam comprando
inventários falsos ou cópias de sites visitados por bots. Os pesquisadores
relatam que o golpe afetou mais de 6.000 sites de grandes publishers, incluindo
The Huffington Post, The Economist, ESPN, Vogue, CBS Sports, Fox News, e até a
Fortune.
O MIT Technology Review
escreveu em 2014 que 36% do tráfego da internet é realizado por máquinas sem
interferência humana. O IAB estimou no estudo de 2015 “What Is an Untrustworthy
Supply Chain Costing the Digital Advertising Industry?” (“Qual é o custo de uma
cadeia de suprimentos não confiável para a indústria publicitária digital?”)
que a indústria perde US$ 4,6 bilhões por ano devido aos bots. O Wall Street
Journal informou em meados de 2017 que a Procter & Gamble – um dos maiores
anunciantes do mundo, com imenso volume de anúncios exibidos – reduziu seu
investimento publicitário digital em US$ 100 milhões, e seu executivo
financeiro disse que a empresa estava apresentando anúncios para bots, e não
para seres humanos. No final daquele ano, os cortes nos anúncios digitais
subiram para US$ 200 milhões.
Alguns anunciantes
recorreram ao uso de blockchains para combater a fraude, apostando no sistema
de arquivos seguros e transparentes dessa tecnologia.
A reação contra a publicidade: Bloqueadores,
centavos e muros
Diante das questões de
usabilidade e finanças para os leitores, ameaças à privacidade e equipamentos
dos leitores, o impacto das métricas do ad tech para a prática de jornalismo e
o fato de que o próprio sistema do ad tech é permeado por fraudes, não é
surpresa que os consumidores e publishers estejam reagindo contra o ad tech.
i.Blockers
Consumidores começaram a
evitar toda a infraestrutura da publicidade com o uso de ad blockers, os
bloqueadores de anúncios. Os ad blockers são plug-ins dos navegadores
(ferramentas que podem ser baixadas e instaladas no browser) e bloqueiam o
download dos códigos embutidos: os bloqueadores impedem os anúncios de instalar
cookies nas máquinas dos usuários, e também impedem as tentativas dos anúncios
de se comunicar com os servidores de ad-exchange. O Wall Street Journal
informou que os publishers se tornaram conscientes do incômodo que os anúncios
causam para os leitores:
“De acordo com muitos
publishers, as agências publicitárias constantemente produzem anúncios grandes
demais, com muitos arquivos de monitoração embutidos, e geralmente mandam no
último minuto para os sites, que ficam sem tempo para recusá-los. Esse
comportamento está contribuindo para tornar o carregamento dos sites muito
lento, o que encoraja o uso de softwares bloqueadores entre os consumidores”
Desde 2015, a
popularidade dos ad blockers disparou.
As empresas de browsers
também adotaram os bloqueadores: em 2017 a Apple abalou os anunciantes digitais
nas plataformas móveis ao incluir automaticamente um bloqueador de anúncios na
versão móvel do Safari, o browser nativo do iPhone. O Google seguiu o exemplo
em 2018, criando mecanismos para bloquear automaticamente o que considera como
anúncios “invasivos” no navegador Chrome, que é usado por mais da metade dos
usuários da internet.
Ao mesmo tempo em que os
usuários e desenvolvedores abraçam o uso dos ad blockers, está cada vez mais
claro que os anúncios estão gerando cada vez menos dinheiro para os publishers.
ii. Dólares no impresso, centavos digitais
A experiência
publicitária está afastando os usuários dos sites de notícias, e para piorar a
situação o mercado hiper-eficiente de anúncios está achatando o valor dos
próprios anúncios. A situação foi apelidada pelo jornalista David Carr em 2008
de “print dollars, digital dimes” (trocando dólares do impresso por centavos no
digital) – os anúncios digitais representam uma parcela cada vez menor do
faturamento dos publishers.
O perfil de fontes de
rendimento do New York Times migrou dramaticamente para longe da publicidade,
que representava 71% em 2000 e apenas 37% no balanço de 2016. A transição tem
sido contínua e certa: entre 2010 e 2015, o faturamento com publicidade
impressa caiu 16% (de 44% do faturamento para 28%) e a sua contraparte digital
teve um crescimento de apenas 2% (de 10% para 12%)
A ampla transparência,
eficiência e disponibilidade dos dados forçou o preço das impressões para
baixo, conforme observa o New York Times em seu relatório anual de 2014:
“As redes e exchanges de
publicidade digital, os lances em tempo real e outros canais programáticos de
compras que permitem que os anunciantes comprem audiências com escala também
desempenham um papel mais significativo no mercado publicitário e estão
forçando os preços para baixo.”
As pressões de mercado
não apenas reduziram o valor dos anúncios digitais, mas sua eficácia relativa
de atingir os consumidores também está sendo questionada: um grupo de marketing
usou estatísticas divulgadas pelo Google AdWords para calcular a média de
click-through (o percentual de pessoas que realmente clicam em um anúncio) e o
número é menor do que 1%.
Os publishers reagiram a
essa baixa taxa de click-through e o baixo faturamento gerado pela publicidade
em display experimentando com modelos publicitários alternativos. Um desses modelos é o “affiliate
advertising”, o que significa que um anunciante trabalha com afiliados (por
exemplo, websites e publishers) para publicar posts patrocinados ou promoções
de produtos, e esses afiliados ganham uma comissão quando um post ou produto
gera uma venda. Os anunciantes obviamente pagam mais por essas ações de
engajamento maior, já que o fluxo de faturamento depende de fazer os leitores
realmente clicar nos anúncios – o que é uma tarefa difícil. O New York Times comprou um site de resenhas
de produtos chamado WireCutter, onde algumas resenhas apresentam links de
afiliados. Se o usuário fizer uma compra por meio de um desses links, o Times
ganha uma comissão.
O Times discutiu o
potencial de apresentar resenhas tendenciosas na seção “About” do site
WireCutter:
“Para ficar claro: nossos
redatores não sabem quais empresas podem ter fechado acordos de afiliação com
nossa equipe comercial antes de selecionarem os produtos para resenhas. Se os
leitores decidirem comprar os produtos que recomendamos como resultado de
nossas pesquisas, análises, entrevistas e testes, nosso trabalho é geralmente
(mas não sempre) financiado por comissões de afiliação do comerciante onde os
usuários fazem a compra. Não existe incentivo para que escolhamos produtos
inferiores ou atendamos pressões de fabricantes – na verdade, é exatamente o
contrário. Acreditamos que é um sistema bastante, que nos mantém focalizados a
atender os leitores em primeiro lugar”.
De modo geral, se
configura um cenário sombrio no ad tech digital. Questões financeiras e de
usabilidade afastam os leitores dos sites de notícias, e os leitores que
permanecem estão usando ad blockers ou clicando em anúncios que geram valores
muito baixos. Enquanto isso, novos modelos de anúncios como o affiliate
marketing são arriscados porque podem gerar reportagens tendenciosas. Não é
surpresa então que os publishers e anunciantes estejam buscando por estratégias
diferentes.
iii. Paywalls e assinaturas
Uma maneira pela qual os
publishers buscam fugir do modelo publicitário é usar paywalls e assinaturas.
Com a queda do faturamento publicitário, o faturamento derivado de assinaturas
cresceu para muitos publishers. Em 2000, as assinaturas representavam apenas
23% do faturamento total do New York Times, mas o percentual chegou a 54% em
2015. Uma paywall é um sistema digital que impede a leitura de conteúdos no
site sem assinatura. Ao criar paywalls, os publishers aprendem sobre os
comportamentos dos leitores e podem incentivar a compra de assinaturas. Existem
três tipos básicos de paywalls:
Hard: todos os leitores
precisam pagar para ter acesso a qualquer artigo em qualquer aparelho
Metered: Um determinado
número de artigos pode ser acessado de graça por mês e depois o leitor precisa
pagar para ter acesso.
Leaky/porous: Apenas um
certo número de artigos tem acesso gratuito, mas os leitores podem ver o
conteúdo quando eles chegam ao site da publicação a partir de um site de busca
ou rede social.
Existe um aspecto
psicológico na construção desses muros de acesso: os leitores que chegam ao
site do publisher por meio de um site de busca ou rede social são considerados
“novos” ou “casuais”, sem fidelidade aparente com o site de notícias.
Ao exibir a eles
conteúdos por meio de uma paywall metered ou porosa, os publishers esperam
conquistar a fidelidade dos leitores, que pode eventualmente ser convertida em
uma assinatura. Alguns publishers estão personalizando pacotes de assinaturas
de acordo com audiências específicas, como fãs de esportes ou interessados em
reportagens sobre crimes. Porém, os publishers enfrentam um sério desafio para
criar paywalls que possam converter audiências fiéis em assinantes, e ao mesmo
serem porosas a bastante para não perder o faturamento publicitário gerado por
por leitores casuais. Os publishers também devem tomar decisões sérias sobre
quando suspender as paywalls em momentos de crise, como no ataque ao World
Trade Center em 11 de setembro. Vários fatores já foram citados pelos
publishers como motivos para suspensão de paywalls, incluindo “informar o
público em momentos de crises ou emergências; aumentar a divulgação de eventos
e ocasiões especiais; ampliar o acesso a conteúdos não emergenciais mas vistos
como de interesse público ou usando anunciantes como patrocinadores de curtos
períodos de acesso geral”. Os acadêmicos de jornalismo Mike Ananny e Leila
Bighash argumentam que essa lista indica a variedade de motivos subjetivos como
os quais os publishers se comprometem.
As pressões negativas
sobre os anúncios display (preços em queda, usabilidade baixa, a disparidade
entre profissionais que são treinados em branding e os formatos pequenos do
display digital, violações de privacidade e a migração para o modelo de
assinaturas) forçou a indústria de marketing a procurar por novos canais para
apresentar suas mensagens aos consumidores – alguns desses canais incluem
apresentar anúncios em plataformas sociais e sites de buscas. Apesar de
existirem várias redes sociais e sites de buscas, o foco aqui são os maiores
players dessas áreas: o Facebook nas redes sociais e o Google na busca. Para os propósitos deste estudo, essas duas
empresas – chamadas de “duopólio” da publicidade digital, que lideram isoladas
no faturamento na indústria – são suficientemente representativas para as
questões que afetam jornalistas e o jornalismo.
Em sua atividade
profissional, porém, os jornalistas devem olhar além dessas duas empresas para
examinar as ações e implicações das várias outras empresas agindo nessa área. A
Amazon está silenciosamente emergindo como uma potência no espaço da
publicidade digital, lançando novas maneiras de atingir os consumidores
envolvidos em comportamentos de compras.
Anúncios em redes sociais
A publicidade em
plataformas sociais envolve um complexo sistema sócio-técnico de empresas de
plataformas, anunciantes, publishers, aparelhos, servidores, algoritmos e
leitores. Esse esquema apresenta uma série de complicações profissionais,
sociais e econômicas para o relacionamento entre notícias e publicidade.
i. Jardins murados e o crescimento da economia da
vigilância
Enquanto alguns leitores
usam ad blockers para se esquivarem dos anúncios display, outros abandonaram a
web completamente e migraram seu consumo de notícias para aplicativos que
funcionam como “jardins murados”, otimizados para aparelhos móveis e
controlados por conglomerados privados. Os exemplos incluem a Apple e o
Facebook. Segundo uma recente pesquisa do instituto Pew, 45% dos americanos
declaram que o Facebook é a principal fonte de notícias para eles (Figura 7)
Figura 7
Com a queda nos preços
dos CPMs e a adoção cada vez maior de ad blockers sufocando o fluxo de caixa da
indústria, é fácil imaginar como a entrada na era das redes sociais representou
uma benção para os anunciantes. Os dados praticamente infinitos sobre a vida
pessoal dos usuários das redes sociais e o controle centralizado sobre o que é
exibido para os usuários criaram imensas possibilidades de targeting. Os
usuários não apenas fornecem dados pessoais diretamente, escrevendo detalhes
sobre seus filmes, músicas, comidas, roupas e programas de TV favoritos, mas
também realizam ações como postar fotografias, marcar amigos, assistir vídeos,
clicar em links, dar “likes” em posts, entrar em “fan pages” e enviar mensagens
aos amigos – e tudo isso é registrado e monitorado.
A Lei Geral de Proteção
de Dados (GDPR) da União Europeia de 2018 forçou as empresas de redes sociais a
disponibilizar todos os dados coletados sobre os usuários residentes na UE pela
primeira vez. Quando os jornalistas começaram a escrever sobre suas
experiências ao baixar a analisar os dados que essas empresas tinham sobre
eles, um repórter notou que o arquivo que o Facebook mantinha sobre ele era
equivalente a 400.000 documentos do Word, incluindo todas as mensagens enviadas
e recebidas por ele, todos os contatos em seu telefone, tudo que ele “curtiu”,
todos os aplicativos que ele conectou ao Facebook e um registro de todas as
ocasiões que ele fez log in e em qual aparelho.
ii. Do targeting para o influencing
Enquanto isso, outro tipo
de persuasão que ocorre nas redes sociais não funciona por targeting baseado em
dados comportamentais ou demográficos, mas usando o poder de indivíduos que
possuem carisma ou capacidade de persuasão dentro de comunidades de
consumidores. Na indústria publicitária, essas pessoas são chamadas de
influenciadores. Um influenciador é alguém com forte relação com sua audiência,
e pode afetar as decisões de compras do público devido ao conhecimento e
autoridade que possuem com essa audiência.
Os influenciadores
representam uma nova estratégia na publicidade em redes sociais, para setores
que vão de produtos de beleza a energéticos ou brinquedos. Alguns publicitários
apelidaram esse fenômeno de “growth hacking”, que significa aumentar a
audiência “pegando carona” nas redes do influenciador. A indústria jornalística
já utiliza o marketing de influência – por exemplo, os publishers Mic,
Refinery29 e Slate contrataram o artista George Takei para promover seus
artigos em sua popular página no Facebook. O site Mic teve um salto de três
dígitos no engajamento (medido em comentários) de um artigo que Takei
compartilhou na página (figura 8)
Figura 8
Os influenciadores se
mostraram tão populares que uma pequena indústria surgiu para oferecer serviços
entre anunciantes e influenciadores. O site Digiday reportou que uma firma
atende mais de 100 publishers, incluindo Slate e Entrepreneur. No final de
2017, o Digiday observou que essas promoções contornavam as regras sobre o que
é conteúdo comercial e o que é atividade orgânica de usuários, violando não
apenas a confiança da audiência, mas os próprios termos de serviço da
plataforma ao apresentar conteúdo patrocinado como se fosse uma opinião ou
apoio autêntico: “As regras do Facebook exigem que os proprietários das páginas
revelem a natureza comercial dos conteúdos postados, algo que essas celebridades
não fazem”.
O Digiday também reportou
em 2017 que as firmas que trabalham com influencers haviam começado a criar
novas estratégias, oferecendo-se para trocar notícias por conteúdo próprio, uma
opção mais lucrativa para o influenciador mas que tirava os publishers da
jogada.
“Um número crescente de
páginas de celebridades e influenciadores estão usando serviços que criam
in-house conteúdos para os influenciadores, que são postados diretamente em
sites criados especialmente para as celebridades, ou em uma página da própria
empresa, onde a celebridade ganha um percentual do faturamento gerado pela
visita dos leitores.
Além disso, algumas
dessas páginas de influenciadores, que exibem conteúdo potencialmente duvidoso
que não passou pelo crivo de nenhuma organização jornalística, foram na verdade
criadas usando sofisticadas ferramentas de inteligência artificial (IA) e
softwares de tracking, para imitar os sites que o usuário já visitou.
A empresa de serviços
para influenciadores Providr usa machine learning para personalizar a aparência
de seu site, que muda de acordo com a origem do usuário a partir da página de
um influenciador – para manter o usuário por mais tempo na página e ver mais
mais anúncios. “Nossa IA aprende o que um usuário tem mais tendência de
gostar”, disse Gary Lipovetsky, co-fundador da Providr.
Na revisão das regras a
respeito de conteúdo patrocinado e compartilhamento que ocorreu depois das
eleições presidenciais americanas de 2016, o Facebook tomou medidas para
corrigir esses atalhos usados pelos influenciadores. No começo de 2018, o
Digiday reportou que “os donos de páginas não podem aceitar ‘nada que tenha
valor’ em troca do compartilhamento de conteúdos que não tenham sido criados
por eles em suas páginas’. Um CEO de uma empresa de serviços com
influenciadores se mostrou pouco preocupado com as novas regras e disse
acreditar que a dificuldade para aplicar as normas vai minimizar seu impacto –
“Como o Facebook vai saber se George Takei postou alguma coisa porque ele gostou
ou postou porque foi pago por isso?”
iii. Facebook e as notícias
O Facebook é uma empresa
de rede social que oferece as versões dekstop e app de seu popular serviço de
rede. O site de estatísticas online Statista informa que no segundo trimestre
de 2018, o Facebook tinha 2,23 bilhões de usuários ativos mensais – quase um
terço da população do planeta.
Depois das eleições
americanas de 2016, foi revelado que o Facebook e suas ferramentas de
publicidade (e outras plataformas de redes sociais) foram tecnologias
essenciais usadas pelas operações de informação da Rússia com o objetivo de
“semear discórdia no eleitorado”. Jonathan Albright, diretor de pesquisa do Tow
Center for Digital Journalism da Columbia Journalism School, observou: “O
Facebook criou ferramentas incrivelmente eficientes que permitiram que a Rússia
acessa os perfis de cidadãos nos EUA e descobrissem como nos manipular. O
Facebook deu a eles tudo que eles precisavam”. Albiright disse ainda que muitas
das ferramentas que os russos usaram, incluindo aquelas que permitem o
targeting de anúncios e mostram exatamente o alcance desse anúncio, continuam
ativas ainda hoje no Facebook.
O Facebook reconhece que
150 milhões de americanos foram expostos à propaganda russa na plataforma e a
empresa foi chamada tanto pelo público como pelo Congresso dos EUA a se
explicar e fazer mudanças na maneira como lida com notícias e desinformação. Em
resposta, a empresa anunciou mudanças em seu algoritmo do News Feed, que um
porta-voz disse que reduziria a prioridade de notícias e conteúdos de marcas. A
empresa também apresentou mudanças nas regras para compartilhar notícias e
publicidade na plataforma, especialmente 1) como as fontes de notícias são
avaliadas em termos de confiabilidade e 2) como a propaganda política é
policiada.
iv. Notícias e confiança
No início de 2017, o CEO
do Facebook, Mark Zuckerberg, disse que a empresa passaria a classificar os
publishers de acordo com a percepção de “confiabilidade” dos sites. Depois, em
um evento com desenvolvedores do Facebook, Zuckerberg falou sobre o impacto
inicial que essa mudança no algoritmo estava causando no modo como os itens
eram exibidos no News Feed da plataforma:
“O Facebook reuniu dados
sobre como os consumidores veem as marcas jornalísticas, perguntando a eles se
conheciam várias publicações e se confiavam nelas. Colocamos esses dados no
sistema, e ele age funciona como um estímulo ou uma supressão, e vamos avaliar
a intensidade disso ao longo do tempo. Acho que temos uma responsabilidade em
reduzir ainda mais a polarização e encontrar uma área em comum”.
A revista Wired observou,
porém, que o os termos empregados na pesquisa (que foi publicada na íntegra
pelo BuzzFeed) para definir o ranking de “confiabilidade” não reconhecem a
complexidade e as múltiplas definições de “confiança”, especialmente em termos
de utilidade política:
“Não apenas as pessoas
não confiam muito na mídia de modo geral, mas seu nível de confiança decorre
previsivelmente da orientação política de cada pessoa. Usando dados de uma
pesquisa realizada na Universidade de Michigan, um estudo publicado em 2010
pelo jornal acadêmico American Behavioral Scientist afirma que três elementos
indicam se alguém vai confiar numa publicação jornalística: o grau de
inclinação para a a esquerda no espectro político; se a pessoa tende a ser
confiante de modo geral; e se a economia está indo bem.”
De modo similar, um
estudo do Pew de maio de 2017 revelou uma grande divergência em confiança nas
notícias, dependendo da afiliação partidária (figuras 9 e 10)
Figura 9
Figure 10
v. Anúncio político ou notícia política?
Outro ponto da reação do
Facebook diante da indignação pública contra as operações de informação na
plataforma foi a implementação de novas políticas sobre como os anúncios
políticos são comprados e classificados. Isso inclui normas mais rígidas sobre
quem pode comprar um anúncio político, rotular cada anúncio político com o nome
da pessoa que comprou e criar um arquivo de busca público com esses anúncios. O
site ProPublica informa que “o Facebook está apostando que uma combinação de
revelação voluntária e revisão por pessoas e sistemas automatizados pode
encerrar uma vulnerabilidade que foi explorada por agentes russos na eleição de
2016”. Essa política, porém, cria novas complicações no relacionamento entre o
Facebook e os publishers de notícias. Um repórter do New York Times cobriu um
painel promovido pelo Tow Center for Digital Journalism, que incluiu o CEO do
Times, Mark Thompson, e o diretor de parcerias com o jornalismo do Facebook,
Campbell Brown:
“Os publishers
protestaram veemente contra serem incluídos no mesmo arquivo que os anúncios
políticos. Neste mês, organizações representando mais de 20.000 publishers nos
Estados Unidos escreveram ao Facebook para contestar essa política, e alguns
outlets, como a New York Media e o Financial Times, ameaçaram suspender as
promoções pagas no Facebook se essa política não for alterada. O Facebook
concordou em criar uma distinção entre o conteúdo dos publishers e os anúncios
políticos, mas ainda não criou um arquivo separado”.
Essa política é
claramente severa em seu impacto sobre os publishers locais, que dizem não ter
os recursos para superar as regras agora em vigor para não entrar em uma lista
negra. O Digiday reportou:
“Ao tentar combater a
difusão de notícias falsas e outras desinformações antes das eleições de 2018,
o Facebook está criando barreiras para organizações jornalísticas legítimas que
querem apresentar suas reportagens para um público maior”. Um publisher local
disse que o Facebook bloqueou uma matéria sobre uma feira na cidade, porque o
texto mencionava o nome de um político, mesmo que o político não estivesse
concorrendo à reeleição”
Vemos aqui um retorno
surreal aos tempos da imprensa comercial pré-moderna, onde os primeiros jornais
publicavam apenas cobertura política patrocinada pelos partidos locais.
Novamente, a história mostra que questões políticas, econômicas e tecnológicas
estão irreversivelmente misturadas.
Anúncios na busca
Vamos considerar o outro
lado do duopólio, o Google – o site de buscas mais popular do mundo. Segundo o
Statista, em julho de 2018 o Google concentrava 63% das buscas feitas em
desktop e 94% das buscas em aparelhos móveis, chegando a 12 bilhões de buscas diárias.
i. Targeting por intenção
Uma anedota clássica da
indústria de marketing é que ninguém presta atenção em um anúncio antes de
entrar no mercado procurando por aquele produto. Uma maneira de capturar a
atenção das pessoas quando elas estão no mercado procurando um produto é
direcionar anúncios enquanto elas buscam informações sobre aquele produto. Isso
torna a publicidade nos sites de busca uma ferramenta muito valiosa para os
publicitários.
Existem dois tipos de
listas nos sites de buscas, e uma delas é de anúncios. “Busca paga” é quando um
site aparece no topo dos resultados de busca porque um anunciante pagou ao site
de buscas por aquela posição. A outra, “busca orgânica”, é quando o algoritmo
do site de buscas determina que aquele website é o melhor resultado para a
busca realizada pelo usuário (figura 11, onde as buscas pagas estão destacadas
em vermelho e os resultados orgânicos estão em azul)
Figura 11
Almejar os consumidores
que estão no meio de uma busca por um produto é chamado de “targeting to
intent” (targeting de intenção) e ocorre em um ponto lucrativo do que é
conhecida como “jornada de decisão do consumidor”. A jornada de decisão do
consumidor é o processo pelo qual os consumidores consideram uma compra,
pesquisam essa compra, compram o produto e depois usufruem desse produto. Para
ilustrar o valor desse spot, vamos considerar uma estatística: em 2014, 13 dos
20 spots mais valiosos no Google Search (leiloados programaticamente por meio
do Google AdWords) incluíam o termo “mesotelioma”, porque a doença é buscada no
Google por pessoas que são potenciais clientes em lucrativos processos
coletivos (figura 13)
Most
Expensive Paid Search Keywords by Average Cost Per Click (Source: AdGooRoo)
U.S.
Google Desktop Text Ads, Jan-Dec 2014
Cost Per
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Figura
13
Notavelmente, os
click-through rates desses anúncios são muito elevados. Enquanto a média dos
anúncios gera menos de 1% de CRT, esses anúncios na busca têm índices que
variam entre 3.08% e 7,79%.
As práticas publicitárias
do Google estão sob investigação pelos legisladores. Em 2017, um tribunal da
União Europeia acusou a empresa de violar as regras anti-truste, modificando
seu algoritmo para colocar seus próprios serviços e parceiros no topo dos
resultados orgânicos de busca – uma acusação contestada pelo Google, citando
falta de prova por parte dos regulamentadores.
ii. Notícias na busca
Com a personalização
digital se tornando cada vez mais sofisticada, alguns críticos mostram
preocupação com o consumo de notícias ocorrer prioritariamente dentro de uma
“bolha de filtros”. O termo “filter bubble”, cunhado pelo cientista Eli Pariser
em um livro com o mesmo nome, significa um estado de isolamento informacional
onde os serviços digitais como sites de buscas e redes sociais recortam as
recomendações de conteúdos por meio de algoritmos, baseados no histórico de
consumo do usuário. Isso faz com o usuário veja informações que se encaixem
apenas dentro de suas visões anteriores. Pesquisas mais recentes, porém,
contestam a afirmação de que o Google é um veículo de bolhas de filtragem de
notícias: testes empíricos mostram que entre usuários de esquerda e de direta,
as recomendações de notícias do Google são praticamente idênticas.
Ainda assim, já que a
onipresença das ferramentas computacionais permite que empresas explorem uma
integração ainda maior com indústrias paralelas, os jornalistas ficam com a
tarefa de entender como essa movimentação vai afetar o mercado e a
regulamentação do consumo de notícias e informações.
CONCLUSÃO
Sem a publicidade, não
teríamos visto o surgimento da cobertura jornalística independente, livre das
amarras do patrocínio político. Os modelos baseados em assinaturas asseguram
que apenas pessoas com dinheiro terão acesso às notícias; a publicidade torna
as informações disponíveis para todos. E sem publicidade, dificilmente a
internet teria crescido tão rapidamente e atendido tantas pessoas ao redor do
mundo. Mesmo assim, essas infraestruturas criaram desafios imprevistos para a
produção e distribuição de notícias. O investidor de tecnologia John Battelle,
escrevendo sobre os danos causados pela publicidade digital, citou o autor
Steven Johnson (que por sua vez estava citando Thomas Schelling, ganhador do
Nobel): “Uma coisa que ninguém consegue fazer, não importando o rigor de sua
capacidade analítica ou de sua imaginação, é uma lista de coisas que não vão
acontecer com ele”.
É aqui que entram os
jornalistas. Os jornalistas precisam ser mais rigorosos em sua compreensão e em
sua curiosidade sobre o ecossistema sócio-técnico e a economia política da
publicidade. Isso não apenas porque seu trabalho é distribuído por meio desse
desse sistema, mas também porque como cidadãos de uma república democrática
capitalista, precisamos de uma cobertura jornalística séria das complexas
relações entre representantes eleitos, as infraestruturas de informação e
distribuição que confiamos e as informações apresentadas a nós pelos publishers
jornalísticos.
LEITURAS RECOMENDADAS
The Daily You: How the
New Advertising Industry Is Defining Your Identity and Your Worth by Joseph
Turow (Yale University Press, 2013)
Weaponizing the Digital
Influence Machine: The Political Perils of Online Ad Tech, by Anthony Nadler,
Matthew Crain, and Joan Donovan (Data & Society, 2018)
The Attention Merchants:
The Epic Scramble to Get Inside Our Heads by Tim Wu (Vintage, 2017)
“Digital Marketing
Strategy, Course Overview Note,” Harvard Business School, by Thales Teixeira
(Harvard Business School, 2013)
Frenemies: The Epic
Disruption of the Ad Business (and Everything Else) by Ken Auletta (Penguin,
2018)
Discovering the News: A
Social History of American Newspapers by Michael Schudson (Basic Books, 1981)
“Friend and Foe: The
Platform Press at the Heart of Journalism,” Tow Center for Digital Journalism
report
Weapons of Math
Destruction: How Big Data Increases Inequality and Threatens Democracy by Cathy
O’Neil (Broadway Books 2016)
“Grappling with the
Weirdness of Advertising” Data & Society Points blog post by Caroline Jack
(Data & Society Points Blog)
O TEXTO ORIGINAL
DESTE GUIA, COM LINKS E NOTAS DE RODAPÉ, PODE VER SER VISTO AQUI:
O publisher mais poderoso do mundo, dono de um dos impérios do século 21, é um craque do entretenimento e uma farsa em todos os outros sentidos. Seu projeto de jornalismo é uma demonstração cabal de que não tem nenhum compromisso além de fazer dinheiro.
Zuckerberg entende de códigos e acertou na mosca nos seus primeiros passos. Um fenômeno de momentos de ruptura tecnológica, com seus impactos na economia, na política e nos processos sociais. Mas não tem noção do que seja cultura e muito menos processos culturais. É irresponsável neste sentido e vai dar ainda uma enorme contribuição para a aumentar a complexidade da crise que estamos atravessando, que tem na mudança da lógica do sistema de comunicação da sociedade um dos seus principais eixos.
Hoje, cada um de nós está no centro do sistema de comunicação, que se transformou gostemos ou não numa extensão do nosso sistema nervoso. Isso – também em função da fragmentação da rede em APPs e ambientes fechados – promove naturalmente um fechamento para o acaso, para a surpresa, para o necessário debate e abertura ao controverso de uma sociedade civilizada. A tendência é promover o próprio ego fomentando uma sociedade ególatra.
Meu primeiro contato com o que viria a ser a Web, na época ainda em gestação, foi no MIT – Media Lab, com o cientista Walter Bender, em 92. Como ele, alimentei a esperança de que “a mídia digital estava longe de engendrar um mundo fragmentado habitado por míopes preocupados com seus próprios interesses. Em vez disso, estava liberando em cada um de nós nosso o desejo básico de compartilhar, o que às vezes se traduz num compartilhamento de informações, idéias políticas e sociais ou bens e serviços. O processo já começou e é de fato uma mudança paradigma”.
A Web emergiu poucos anos depois. Era aberta, livre de espaços que se valem deste início de novos tempos e, por isso, do desconhecimento do público das suas possibilidades, para desvirtuar os propósitos humanistas com que a rede foi criada. Continuei com os meus laços estreitos com o Media Lab até 2006. APPs e ambientes restritos como o Facebook batem de frente com o sonho de Tim Berners-Lee e toda a comunidade científica que contribuiu para a construção da rede.
O artigo que transcrevo abaixo é do Frederic Filloux, do Monday Note, um especialistas das mídias tradicionais e das novas e que como Walter Bender e eu consideramos que “as notícias nos dão uma nova informação e as ferramentas com as quais explorá-la. Uma fonte de modelos compartilhados sobre o mundo. Elas não nos dizem o que pensar, mas nos ajudam a navegar na complexidade de nossas vidas”. Esperávamos que a mudança provocada pela tecnologia no ecossistema de comunicação da sociedade fosse um meio para melhorar o acesso dos indivíduos às notícias para veículos de engajamento ativo. No artigo de Filloux, transcrito abaixo, uma explicação didática e objetiva da balbúrdia que Zuckerberg promove de forma cínica do o seu Facebook.
Arriscaria dizer que Zuckerberg como empresário do mundo digital se equivale a Trump como presidente do país mais rico e a democracia mais sólida do Ocidente. Para eles, a verdade é maleável, instrumental, subjetiva. É tudo sobre eles. É sempre sobre eles. Ególatras e a única contribuição que podem dar para a humanidade é acirrar ainda mais os ânimos das pessoas de uma sociedade estressada pelo processo mais delicado e dramático de mudança que a História já assistiu. E é claro promover os idiotas da objetividade, seus semelhantes.
Rodrigo Mesquita
PS: a versão para o português é do meu amigo e companheiro de viagem Sergio Kulpas.
O Facebook precisava fazer alguma coisa pelo ecossistema de notícias. Mas sua liberdade de movimentos é limitada pela própria estrutura de faturamento da empresa. Assim surge um projeto que combina cinismo e ingenuidade.
Frderic Filloux
O Facebook tomou duas medidas significativas a respeito de sua postura em relação ao jornalismo. A primeira foi no dia 6 de janeiro, com a contratação de Campbell Brown, ex-âncora da NBC e da CNN, no cargo de “diretor de parcerias jornalísticas”. A segunda foi em 11 de janeiro, com anúncio do Facebook Journalism Project.
A respeito da primeira ação, é de fato uma boa ideia contratar uma mulher para esse cargo; é um sinal claro para um setor conhecido por sua relutância em colocar mulheres em cargos executivos (os dados que indicam isso estão no estudo Status of Women in the in the U.S. Media)
Apesar disso, para estabelecer relacionamentos com chefes de redações, esperava-se um profissional muito tarimbado. Não há escassez de jornalistas experientes com capacidade para reforçar a credibilidade do Facebook. Uma âncora de telejornal não é a pessoa mais indicada. E para enfatizar ainda mais a fragilidade da contratação, o Facebook deu a entender que Campbell Brown não vai lidar com conteúdo.
O lançamento do Facebook Journalism Project teve muito mais peso. Segundo explica Fidji Simo, diretor de produtos do Facebook, o projeto se apoia em três pilares:
1 – “Desenvolvimento colaborativo de produtos noticiosos”, como novos formatos de storytelling, iniciativas para notícias locais e novos modelos de negócios, e “hackathons”;
2 – “Treinamentos e ferramentas para jornalistas”;
3 – “Treinamentos e ferramenta para todos”, o que inclui um conjunto não definido de medidas contra as fake news.
Muito bem. Colaboração, treinamento de jornalistas, ferramentas… parece familiar? Realmente é – reproduz ao pé da letra a declaração de princípios do Digital News Initiative do Google. O DNI foi lançado há dois anos pelo Google com oito publishers europeus. Como representante de um desses publishers, eu estava muito envolvido no projeto. Graças ao DNI, o Google foi capaz de estabelecer (e em alguns casos restaurar) boas relações com muitos publishers ao redor do mundo. É óbvio que o Facebook Journalism é uma resposta ao Google, nos níveis tático e político (leia-se geopolítico). O Facebook cita um relacionamento próximo com vários publishers alemães que estão às turras com o Google há muito tempo. Axel Springer e outros vivem enviando informações negativas sobre a atuação do Google em seus mercados para Comissão Europeia.
Além da percepção, está uma pergunta: até que ponto as ações do Facebook poderiam realmente ajudar o combalido ecossistema das notícias?
Em primeiro lugar, o Facebook precisaria fazer algo a respeito das notícias. A rede social enfrenta dificuldades em duas frentes diferentes: uma é a questão das fake news, problema que foi abordado de modo fraco por Mark Zuckerberg e sua equipe, para dizer o mínimo. O segundo problema é a crescente insatisfação dos publishers: eles se sentem enganados pelo que veem como uma tendência do Facebook de sequestrar o valor econômico de seu conteúdo. Depois de sucumbir à miragem do Instant Articles, os publishers chegaram a uma conclusão desagradável: os números de audiência eram ótimos, mas a monetização generosa esperada se mostrou na verdade um mero conta-gotas (Semana passada, para piorar, o Facebook cortou os subsídios dados a um pequeno grupo de publishers para a produção de vídeos ao vivo)
E se é impossível separar cinismo de ingenuidade aqui, o Facebook Journalism Project contém pérolas do ridículo. Vejamos duas delas.
Segundo a explicação de Fidji Simo, o Facebook está comprometido a “promover o alfabetismo para notícias”:
“Vamos trabalhar com outras organizações para melhor entender e promover o alfabetismo noticioso dentro e fora de nossa plataforma para ajudar as pessoas em nossa comunidade a ter as informações que precisam para decidir em quais fontes confiar.”
Não é piada. Se você conseguir engolir essa sentença com dezenas de palavras sem vírgulas, ela diz algo como “McDonald’s adota menu de baixas calorias” ou “A Monsanto compra a rede de produtos orgânicos Whole Foods”. Palavras cheias de gás, desconectadas da realidade.
Uma das “outras organizações” que vão fazer parte do time do Facebook chama-se “News Literacy Project”, que destaca o apoio do Facebook como se fosse uma medalha de honra:
No box roxo está escrito: “aprenda a navegar pelas fontes de informação na internet de modo mais cético”. Curtindo ou não (perdão pelo trocadilho), o Facebook está exatamente no extremo oposto da nobre ideia da NLP. O sistema inteiro do Facebook é construído em torno da ideia de fechar seus usuários dentro de um ambiente “amigável”, totalmente blindado contra conteúdos que não reflitam suas ideias, opiniões, crenças, afiliações, etc… No mundo do Facebook, clique após cliques, todos erguemos nossos muros e reforçamos essas barreiras cognitivas. O mecanismo está no coração do modelo de negócios faminto por pageviews do Facebook: trata-se de reforçar sua sustentabilidade. O Facebook precisa manter seus usuários pelo maior tempo possível dentro de seus serviços. É por isso que o algoritmo é programado para evitar expor um usuário de “esquerda” a conteúdos de “direita”, e vice-versa.
Como disse um amigo especialista em tecnologia e mídia, “o Facebook é acima de tudo uma plataforma de entretenimento. Essa plataforma quer que você permaneça no ambiente a todo custo. Assim, no que se refere a notícias, se o seu perfil estabelece que você precisa de 20% de informações em seu newsfeed, é isso que você vê. Para outra pessoa, o algoritmo pode decidir que “notícias” não é o melhor meio de mantê-la dentro do ambiente da rede social, então vai reduzir essa proporção para 3 ou 4% — tudo cuidadosamente filtrado”. Na verdade, os usuários não veem mais do que 10% do conteúdo jornalístico que assinaram em suas timelines simplesmente porque notícias não representam o item que gera mais cliques em um feed do Facebook. Eu trato desse assunto neste artigo: Facebook’s Walled Wonderland Is Inherently Incompatible With News.
Outra ideia exótica do Facebook Journalism Project é usar a empresa recém-adquirida CrowdTangle, que define seu propósito como “oferecer análises críticas de mídias sociais para auxiliar publishers ao redor do mundo a avaliar seu desempenho em redes sociais e identificar reportagens de impacto”. Em outras palavras, a empresa ajuda a avaliar e promover o jornalismo segundo as necessidades do Facebook.
“Um cachorro resgatado na Humane Society Silicon Valley muda a vida de um homem com excesso de peso, ajudando-o a se tornar uma pessoa mais ativa” — 920.000 interações.
“Um grupo de irmãos adolescentes contribui com a comunidade aparando gramados DE GRAÇA” – 961.500 interações.
“Um preview do Kitten Summer Games da Hallmark” – 1,05 milhão de interações.
“Um juiz da Georgia fala sem rodeios para um grupo de jovens sobre as consequências de uma juventude criminosa” – 1,08 milhão de interações.
“É um cachorro? É um cavalo? Um casal de Nevada acredita possuir o cão mais alto do mundo” – 1,17 milhão de interações.
“Cadela passa de assustada a feliz ao se ver reunida com seus filhotes” – 1,45 milhão de interações.
“Policiais ficam do lado do pai de um garotinho no primeiro dia de escola” – 1,5 milhão de interações.
Pode respirar agora. Tudo bem, são histórias de grande interesse humano (e animal), capazes de comover grandes multidões.
Mas elas representam a visão do Facebook sobre o jornalismo? Quero dizer – perdão pelo acesso de conservadorismo jornalístico – o tipo de jornalismo que educa, expande as mentes, ajuda as pessoas a formar sua opinião sobre questões importantes como atendimento de saúde ou os riscos do Estado Islâmico, o tipo de notícias que ajuda a entender complexas questões sociais?
É ESSA a visão do Facebook sobre um sistema de informações equilibrado?
O primeiro site de informação jornalística no Brasil – o da Agência Estado – começou a nascer em 1988. A visão de que o desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação, TICs, iriam determinar o futuro das tradicionais empresas jornalísticas, foi o mote para iniciar a transformação de uma unidade operacional do Grupo Estado numa inovadora empresa virtual de informação.
Estávamos em 1988 e o objetivo explícito era o de criar um serviço de informações econômicas em tempo real, visto que a comunidade financeira era a única, naquela época, em condições de sustentar uma empresa de informação com estas características. O objetivo implícito era iniciar o processo de conquista de conhecimento para, no futuro, contribuir para o processo de migração dos tradicionais negócios de uma empresa jornalística do papel para as redes de comunicação e os diversos displays que elas comportam.
A primeira rede de distribuição de informação da AE era estruturada num sistema que utilizava a sub-banda do FM. A Embratel era monopólio estatal e a alternativa para este sistema seria as linhas privadas que, em função da inexistência de um mercado competitivo, eram caras e de operação duvidosa. Era impossível imaginar que as TICs apresentariam a evolução geométrica que vêm ocorrendo desde aquela época. Muito menos que, no início do séc. XXI, as tecnologias não proprietárias estariam iniciando o processo de superação dos grandes monopólios que nasceram com o início desta nova aventura da humanidade.
A Agência, neste processo, atingiu um grau de excelência informativa que a levou a uma situação de referência de mercado. Talvez, seja a única empresa de informação brasileira cujos processos de captação, processamento e distribuição de informação tenham sido, sem exceção, estruturados em rede. Isso também foi verdadeiro para seus processos administrativos, comerciais e tecnológicos. Uma empresa organizada em rede – células de profissionais multidisciplinares com liberdade e responsabilidade para criar e preparar o futuro.
A abertura de caminho para conquistar outras formas de relação com o mercado, além do tradicional modelo de negócio sustentado por distribuição de informaçao, foi possível para a AE por causa desta organização funcional em rede e porque, também em função desta filosofia, a empresa nestes anos todos conquistou um profundo conhecimento das tecnologias de informação e comunicação e suas possibilidades, especialmente as de código aberto.
Por uma questão de custo x benefício, a empresa começou a desenvolver-se em cima do sistema operacional aberto Linux e de softwares livres (o ecosistema linux), a partir de 1996. A consciência dos profissionais da necessidade que tinham de criar novas plataformas de relacionamento com o público, aliada a uma postura aberta em relação à tecnologia, permitiu um primeiro grande avanço neste novo mundo. E daí começa a se explicar a liderança da Agência.
O porvir das tradicionais empresas de informação, está claro, dependerá da capacidade delas para, paulatinamente, desenvolverem novos modelos de negócios sustentados por operações de network. A Internet é muito mais do que um meio adequado para organizar e distribuir informação. É uma nova infra-estrutura que permeia todas as relações e atividades humanas. Como meio de comunicação, é o mais importante desde a prensa de Gutenberg. É um novo ecossistema para a humanidade explorar, abrir novos caminhos e construir novas oportunidades.
Ela contém todos os meios que vieram antes e, por ser rede, enriqueceu este conjunto com a convergência e a interatividade. Este novo ecossistema provoca a mudança, induz a rearticulação dos processos de produção de conteúdo e de riqueza. E com isso abre um novo caminho para o público e, pela primeira vez, com o público. Revirando e contrariando a maioria dos conceitos que assumíamos sobre mídia e sobre modelos de negócio em geral. No mundo da Internet, a rede, nós somos definidos pelo que sabemos e pelo que compartilhamos. Sem conhecimento e sem compartilhamento não se vai a parte alguma.
As empresas jornalísticas tradicionais, no entanto, ainda não despertaram plenamente para este fato. Junto com os outros meios de massa broadcast – a TV aberta e o rádio – detinham, até o advento da Web, praticamente o monopólio de distribuição de informação para uma determinada comunidade, num espaço físico específico. Talvez por isso mesmo esta indústria tenha restringido sua atuação, neste primeiro momento do novo ambiente em construção, a procurar emular seu modelo de negócio, que historicamente se sustenta em função da franquia que deteve até recentemente de distribuição de informaçao editorial e comercial, para o mundo da Internet.
Isso contribuiu para que a rede seja entendida pelo público quase que exclusivamente como uma enorme biblioteca digital composta por sites ou portais, com maior ou menor volume de informação, mais ou menos dinâmicos e com ferramentas melhores ou piores, para manusear e usar a informação. Sua enorme capacidade de organização e publicação de qualquer tipo de conteúdo acabou dando o tom, nestes primeiros anos. Talvez não poderia ter sido diferente, mas mesmo assim não foram poucas as mudanças que ela gerou e vem fomentando nas nossas vidas.
Aspas, uma confissão
Não acredito que os blogs ou os wikis (softwares de publicação de facílima utilização que permitem o desenvolvimento de conteúdos individualmente ou coletivamente), como estão conformados hoje, vão substituir o jornalismo tradicional. A única certeza que tenho é que o processo de formação de opinião daqui para a frente será cada vez mais autônomo, difuso, fragmentado, complexo e sofisticado.
Vejo a internet como uma infraestrutura para articular qualquer tipo de relação humana. Sejam elas de cunho econômico, político ou social. A rede não é só um novo meio de comunicação, apesar de neste primeiro momento ter servido antes de tudo para organizar e distribuir informação. Ela é antes de tudo fator de rearticulação de processos, privilegiando as possibilidades de cooperação, colaboração e compartilhamento.
As tradicionais empresas jornalísticas ignoram estes fatos e, também por isso, vêm perdendo mercado há anos. Suas estratégias são exclusivamente defensivas: jornais populares, jornais gratuitos, tablóides e reformas editoriais clássicas. Nenhum movimento estratégico para procurar explorar as possibilidades de network.
O mundo mudou. Na Idade Média quem dominava a informação era Igreja e o poder temporal. Com a Renascença e o conjunto de inovações que a impulsionaram, entre elas a criação da prensa por Gutenberg, a Igreja e seus aliados perderam este monopólio. A burguesia ascendente teve acesso ao conhecimento e à possibilidade de publicar e vender suas idéias e valores.
Em meados do séc. XIX, o jornalismo começou a virar negócio. As publicações deixaram de ser panfletos de vida efêmera para se tornarem perenes e gerarem uma plataforma de negócios. O apogeu disso ocorreu entre as duas grande guerras. Hoje, com a infra-estrutura de redes, o modelo de negócio baseado exclusivamente em distribuição de informação morreu (não é morte súbita, é um definhar lento e dolorido.). Sempre será mais fácil entender a crise que o declínio.
Em 1930, São Paulo tinha 800 mil habitantes e o principal jornal da cidade circulava com 100 mil exemplares. Seus classificados eram a principal rede de vendas da cidade. Não existiam cadeias de lojas ou de supermercados. Os jornais aqui e em cidades semelhantes eram os principais canais de vendas de uma enorme gama de produtos e serviços – uma plataforma de relacionamento ajustada e adequada para a época como nenhuma outra em todos os tempos. Isso permitiu que os jornais desenvolvessem em todo mundo um jornalismo caro e sofisticado.
Fechas aspas, o mundo em rede
Este tempo acabou. Vivemos num mundo interconectado em tempo real. A minha geração, que foi surpreendida por este processo no meio do caminho, não terá tempo para reaprender a pensar, num contexto tão profundamente modificado por novas ferramentas e possibilidades. Sua responsabilidade é a de facilitar o caminho para as gerações que se seguirão. Estas viverão num tempo em que a conexão será uma commodity, um direito tão fundamental quanto o de votar. Assim como o equipamento para se conectar.
A segmentação da informação, que é possível hoje graças ao poder de distribuição cada vez mais barata e rápida, leva naturalmente à formação das comunidades, e de comunidades dentro de comunidades, e a atenção compartilhada dá um centro de gravidade a elas. A interatividade que a rede traz leva às tecnologias de colaboração, de compartilhamento e de geração de novos espaços de conexão humanos, e cria todo um novo modelo de produção de conteúdo e de riqueza. É esta a mudança mais profunda e radical e, neste contexto, as empresas de informação deixaram de ser o centro.
O cidadão, o usuário, passa neste novo mundo em construção a ser ativo, respondendo on line aos estímulos de atenção e recriando-os. Ele é o centro de geração e ampliação da atenção e dos estímulos. Não mais uma antena, mas um roteador. Não mais um elemento em linha, mas um processador em paralelo. O cidadão é único e fundamental, mas varia na intensidade de sua participação e não pode ser discriminado, é um comunitário. Não podemos menosprezar a quantidade de informação (e, eventualmente, qualidade) que blogs, wikis e outras ferramentas de publicação, que serão desenvolvidas, aportam e aportarão cada vez mais ao processo. São milhões de repórteres com celulares e câmaras, num processo em rede que mal se iniciou e que vai amadurecer.
As tradicionais empresas de informação poderiam ocupar espaços importantes neste processo. A conectividade, enquanto pensamos com o modelo velho na cabeça, implica gradação: ilhas (jornais), arquipélagos (meios de
maior alcance, rádio, tv), o planeta ligado (conectividade ilimitada,
dispersão instantânea da informação, potencialização de nichos e
comunidades isoladas).O que gera necessidade de centros referenciais da busca pela informação, que é global e irrestrita. O Google, neste sentido, é um exemplo que poderia ser referência para os jornais.
Ninguém mais pode controlar as possibilidades de criação, de comerciar, de distribuir, de achar e de interagir dos cidadãos. A barreira de entrada para a mídia foi demolida. A transmissão de informação deixou de ser monodirecional para se transformar num ‘pool’ aberto. Isso muda tudo: as inter-relações, a equação econômica, a estrutura de poder.
Neste mundo novo, o controle está mudando para as mãos do cidadão. O futuro da mídia está nas mãos do público. As tradicionais empresas jornalísticas, os políticos, o governo e o marketing das corporações distanciaram-se da sua dimensão humana ao se colocarem em pedestais frente ao público. Não admitem erro. Por isso resistem em entrar em processos de conversação e têm enorme dificuldade para perceberem que a notícia não acaba quando é impressa e difundida.
Não percebem que o verdadeiro ciclo da história começa aí, quando o público levanta questões, acrescenta fatos e corrige erros, levando a uma nova perspectiva mais próxima da verdade.
O objetivo primordial da mídia talvez seja o seu mais tradicional e valoroso, que vem a ser a defesa da civilização, da democracia e da ética, mas agora na velocidade deste novo tempo. Por isso é primordial que se busque estabilizar este grande e impulsivo criar de comunidades por meio de uma plataforma de valores humanos geradora de confiança entre as pessoas.
É esta a lição que se começou a receber e se poderia aprender, na construção da história da Agência Estado. Os 10 anos de atuação na rede com um portal de informação aceleraram e aprofundaram o processo de aprendizagem. E com certeza ainda há muito mais que aprender do que usufruir.
Artigo publicado na edição deste mês na Revista de Jornalismo da ESPM, Edição Brasileira da Columbia Journalism Review
dois tempos de entendimento da rede
O ano era 94, o país o México, governado pelo corrupto Carlos Salinas, que tinha adotado uma política de ajuste do câmbio correlacionado às variáveis de inflação e juros, com uma desvalorização progressiva e controlada do peso atrelado ao dólar. Na campanha presidencial um dos candidatos é assassinado. Salinas passa o governo para Ernesto Zedillo, que em 20 de dezembro decide desvalorizar o peso para promover as exportações mexicanas. Todo o sistema desmorona fazendo o país entrar numa crise que durou anos e gerou o Efeito Tequila: uma crise de confiança do mercado financeiro internacional que afetou profundamente a economia brasileira e de toda a América Latina.
Foi neste contexto de crise que escrevi o artigo publicado em 26 de março de 95 no caderno de economia de O Estado de S Paulo sob o título nebuloso Tempo Real vai democratizar a informação e aqui republicado com o título finalmente revisado ytics . Desde 88, dirigia a Agência Estado, uma unidade operacional da empresa, com o os objetivos de transformá-la numa unidade de negócios e contribuir para que o Grupo Estado abraçasse o futuro do mundo da informação: o domínio das possibilidades do computador, dos softwares e das telecomunicações. Na AE, desde esta época, tínhamos consciência de que a emergência das TICs botaria o indivíduo no centro do processo. As empresas jornalísticas iriam perder o domínio do público.
Esta aventura fascinante, infelizmente abortada, tinha sido iniciada em 88 por um pequeno grupo de jornalistas que comungou minha visão de futuro desenvolvida em meados dos anos 80. No primeiro passo, reformulamos todos os processos informativos (prospecção, captação e distribuição) do Grupo Estado para que ele pudesse avançar no mercado como empresa de informação e não exclusivamente jornalística.
Além disso, fomos responsáveis pela especificação de um sistema eletrônico de recebimento e distribuição de informação desenvolvido in house. O Grupo Estado tinha iniciado seu processo de informatização, mas nas áreas editoriais só tinha contemplado das redações dos jornais para baixo. A entrada e saída da informação continuava dependendo de uma obsoleta e restritiva rede de telex. Ninguém na empresa tinha refletido e muito menos analisado este gargalo. Esta foi uma das vantagens competitivas da AE: nunca dependeu de sistemas centralizados com a inteligência fechada numa caixa preta.
Depois desta primeira arrancada para poder chegar ao mercado com eficácia, reorganizamos e desenvolvemos novos serviços para o mercado de jornais e revistas e lançamos serviços de informação empresariais e ambientais distribuídos por fax. Já éramos uma unidade de negócios. Uma receita marginal de 400 mil cruzados avançava para alguns milhões.
Em 92, depois de uma maratona atrás do que havia de mais avançado na indústria da informação, lançamos a Broadcast: o serviço de informações em tempo real do Grupo Estado para o mercado financeiro, que enfrentando Reuters, Bloomberg e a falecida Telerate da Dow Jones, então empresa proprietária do Wall Street Journal, já era líder de mercado em 94, posição que mantém até hoje. Os investimentos para a partida estavam pagos e a empresa faturava dezenas de milhões de reais, com uma margem muito maior do que a dos jornais porque fazer jornalismo no ambiente eletrônico tem um custo baixo graças à plataforma elwtrônica.
Desde o início, este grupo de profissionais que transformou a Agência Estado numa empresa referencial para o mercado tinha consciência que a Broadcast era uma plataforma de aprendizado e que no futuro próximo a base das receitas das tradicionais empresas jornalísticas, os classificados, seria roubada pelas telecomunicações (a internet que estava nas nossas portas), por ambientes criados por softwares e processados pela computação.
Tínhamos que começar em algum mercado e o único aparelhado e disposto a pagar por serviços nestes meios era o financeiro. Em 92, filiamo-nos ao então laboratório de mídia do MIT, o Media Lab. Foi lá, nos programas News in the Future, Information: Organized e Simplicity, que se consolidou a nossa visão de que daria certo neste novo mundo em constante beta e cada vez mais distribuído, descentralizado e descontínuo quem tivesse coragem de se perder na rede. Mais do que informar, o papel das empresas de informação foi e será sempre contribuir para os processos de articulação da sociedade. A notícia é um meio, não o fim. Elas não nos dizem o que fazer ou o que pensar, mas são um convite para a navegar, para a participação.
O processo de formação da opinião pública daqui para frente será cada vez mais fragmentado e autônomo, assim como a própria sociedade. A revolução tecnológica que estamos vivendo é muito mais profunda do que a do século 15, quando a reinvenção da prensa pelo mundo ocidental e outras inovações abriram o caminho para o processo que levou à revolução industrial. As tradicionais empresas jornalísticas, apesar de todos os problemas que enfrentam, continuam tendo todas as condições objetivas para gerarem novos caminhos e negócios. Falta conhecimento, visão e coragem.
RLM
A Tecnologia democratizará os processos de informação
olhando o futuro, 1995
É redundância dizer que estamos assistindo ao mais profundo, dramático e rápido processo de mudança que a humanidade já sofreu. Mas é necessário quando estamos falando de responsabilidade das empresas e profissionais empenhados em informar o mercado financeiro: o primeiro setor da nossa sociedade que se interligou em tempo real globalmente, subvertendo a ordem instituída e questionando a noção de soberania nacional.
Se isso já está claro há muito tempo para a pequena parcela da aldeia global que participa ativamente deste mercado, é uma grande novidade e fator de insegurança para os meros mortais que vêm de um dia para o outro a economia de um país – o México, e por consequência a de todo o nosso Continente – sofrer uma revolução em função da movimentação dos trilhões de dólares que alimentam o mercado financeiro internacional.
Até que ponto um fato como este é de responsabilidade dos protagonistas deste mercado, ou de políticas governamentais, ou de questões estruturais, como cultura protecionista e corrupção, não é objeto deste artigo. Nossa responsabilidade, empresas e profissionais dedicados a fornecer informações em tempo real para o mercado financeiro, é com a correção e acurácia da informação, com a certeza dos protagonistas do mercado de que não temos nenhum tipo de interesse ou posição no mercado. Mais do que isso, a certeza de que o grupo empresarial que hoje sustenta a operação não tem outro interesse econômico fora do setor de informação.
O nosso dia a dia é feito de sangue frio e responsabilidade. Sangue frio porque centenas de pessoas estão envolvidas num processo de captar, processar e enviar notícias, análises e dados para milhares de telas de computadores – em mesas de operação de bancos, corretoras, traders, scalpers, departamentos financeiros de empresas – e, por isso, a responsabilidade: são eles que movimentam os trilhões de dólares. Uma operação como essa envolve não só jornalistas. Envolve homens de tecnologia, de marketing, de relação comercial e de administração. É uma operação casada em tempo real, em que todos têm o mesmo nível de responsabilidade em relação à nossa missão: instrumentalizar os homens do mundo de negócios para tomar posições, graças a um trabalho jornalístico impecável.
Mas temos um paliativo: a certeza de que será este o processo da indústria da informação daqui para a frente. Houve um tempo em que o meio jornal tinha o monopólio da informação. Era o único canal entre a sociedade civil e o poder público. Representou, com o desenvolvimento da revolução industrial, a praça da cidade antiga: o ponto de encontro da coletividade. O lugar onde ela se encontrava para se informar, refletir e debater o seu próprio futuro. Depois, vieram o rádio e a televisão. Junto com eles, a massificação. A possibilidade de um grupo econômico interferir como nunca na evolução dos costumes e da cultura. Com o domínio da informática, que permite a um grande grupo tradicional de informação ter numa mesma base tudo o que captou por meios próprios ou de terceiros, e com o domínio da telecomunicação, que permite a este mesmo grupo fornecer a informação para os mais diversos públicos, pelos mais diversos meios, o jogo mudou.
A revolução da informação trouxe incerteza e insegurança. Trouxe a possibilidade de movimentos especulativos jamais sonhados. Mas trouxe também a possibilidade da democracia direta. Quanta tempo e a que custo chegaremos lá é outra questão. O fato é que a forma como hoje o mercado financeiro se informa, em tempo real globalmente, já é algo possível para os mortais comuns: a Internet e derivados representam a democratização da informação, que muito em breve transitará por ela em texto, imagem e som em tempo real. Agora, muito além do que entre todos os mercados, entre todas as pessoas, que estarão no centro do processo.
O desafio quese coloca para as empresas é perceber que todas as suas cartas estão nos recursos humanos: a tecnologia, o meio, será de todos com custos insignificantes. A futura (não tão futura assim) empresa de informação terá a possibilidade de oferecer ao público conhecimento agregado. Num processo que privilegia a horizontalização, o trabalho através de células comprometidas com o processo. Ao contrário do antigo processo industrial, que privilegiava estruturas piramidais e concentração de poder. O desafio dos profissionais da informação é manter o elo de confiança com o público em geral, conscientes de que no próximo milênio as grandes empresas de informação vão se atomizar em pequenas unidades. Estamos a um passo da aldeia global. O que estamos assistindo no mercado financeiro é só a ponta do iceberg. A democratização da produção e a disseminação da informação só se legitimarão na medida em que os agentes deste processo tenham consciência rigorosa da sua responsabilidade com o público.
Artigo publicado no O Estado de S Paulo em março de 1995, quando dirigia a Agência Estado. E republicado agora na Revista de Jornalismo da ESPM.
A era das multiplataformas começará a se consolidar
olhando para o futuro, 2014
Considerando que nos próximos 10 anos a tecnologia estará integrada nos ambientes e em cada um de nós – não será mais algo que você liga e desliga – e que isso mudará totalmente a experiência humana de viver, vejo os avanços das multiplataformas (sistemas integrados em rede) de atuação na rede como a principal tendência em 2014.
Monitoramento, curadoria e agregação, articulação e governança são os processos provocados na sociedade pela linguagem, pela informação. E assumidos como técnica pelo jornalismo. Da linguagem oral à eletrônica, que promete, se não o retorno, a valorização da cultura oral. Mídias sociais como Twitter, google+, facebook, linkedin, pinterest, tumblr, youtube, paper.li, rebelmouse, instagram, scoop.it, flipboard, meddle etc são plataformas pontuais, ferramentas, mídias. É neste ecossistema que se pratica hoje o jornalismo.
Num mundo que a cada dia ganha maiores índices de complexidade e fragmentação atuar de forma isolada com uma ou outra destas mídias é inócuo. Indivíduos, profissionais e empresas que atuam com propriedade e objetividade no novo ecossistema da informação vêm avançando na construção de suas multiplataformas com o conjunto de ferramentas que lhes parecem mais apropriadas para seus objetivos.
Rede social existe desde a idade da pedra. É a base de relacionamento de indivíduos, de entidades, de empresas, de setores da economia, de partidos políticos, de sindicatos, de qualquer organização humana. No mundo digital, na economia social, esta base de relacionamento tem que estar organizada na rede para lhe dar mais organicidade e objetividade.
Consolida-se aí o conceito de multiplataforma (e viabilizam-se as redes sociais, as redes de interesse específico, as redes de nicho), que requer ainda processos de monitoramento (Big Data) e a inter-relação com landing pages apropriadas para fazer andar o processo de comunicação e articulação frente a um ou uma gama de objetivos. Além, é claro, da integração com as mídias tradicionais, os antigos ambientes do jornalismo. Há e haverá por um bom tempo uma forte interdependência entre os dois mundos, que são um só.
A tendência tecnológica é reforçada pela demanda da sociedade. A tecnologia, suas ferramentas e processos vão contribuir para dar vazão às necessidades de uma sociedade muito mais complexa e fragmentada da que foi regida pelas tecnologias da era industrial. Esta percepção já é latente na sociedade contemporânea atônita com o contexto e surpreendida pelos novos processos da informação, comunicação e articulação num mundo em profunda transformação. Neste cenário, o do avanço das multiplataformas de atuação, estão contidos também o cloud, a mobilidade e o analytics.
A articulação do movimento ambientalista brasileiro, a criação da fundação sos mata atlântica, a crise dos jornais, o nascimento e os primeiros passos da internet e da rede, a sociedade industrial e a era do conhecimento são os temas deste depoimento dado em 2004 para o BIOCLIMA em função das comemorações dos 18 anos da SOS Mata Atlântica. A rede é o caminho da solução para a questão ambiental.
“A nossa geração – tenho 50 anos de idade – por mais que você trabalhe intensamente com computador e as tecnologias digitais – tem limitações de entendimento, compreensão das possibilidades da rede. Não nascemos com ela implantada e amadurecida. Ela não está no nosso cortex, não é uma extensão da nossa inteligência. As gerações futuras não, isso vai estar imbuído dentro da inteligência do indivíduo, da sua capacidade de articulação e expressão. O que a rede exponencia é justamente isso, a articulação, a forma de se expressar, de se comunicar. No futuro, as redes vão se auto criar. Serão processos quase autônomos.”
Projeto: SOS Mata Atlântica 18 Anos
Depoimento de: Rodrigo Lara Mesquita
Entrevistado por: Beth Quintino e Rodrigo Godoy
Local: São Paulo, 20 de dezembro de 2004
Realização: Museu da Pessoa
Transcrito por: Denise Boschetti
Copydescado por: Rodrigo Mesq
P/1- Bom dia, Rodrigo Mesquita. Eu queria te agradecer por ter vindo dar o seu depoimento e gostaria que você começasse falando seu nome, data e local de nascimento.
R- Bom dia. Meu nome é Rodrigo Lara
Mesquita. Nasci em 9 de março de 1954, em São Paulo.
P/1- Rodrigo, e seus pais, são de São
Paulo?
R- Ruy Mesquita e Laura Lara
Mesquita, também nascidos em São Paulo.
P/1- A sua formação?
R- Estudei História na USP.
P/1- Você veio de uma família ligada
à imprensa, jornalismo?
R- Isso.
P/1- O seu pai, qual a formação dele?
R- Meu pai fez Filosofia e Direito,
mas não se formou em nenhuma das duas
P/1- E você nasceu em São Paulo. E
você morava onde na sua infância?
R- Morei no Pacaembu a vida inteira,
até casar.
P/1- E como era na sua infância a
região Pacaembu?
R- A primeira rua que eu morei foi a Itapitangüi,
que fica ali numa ilha, até hoje privilegiada do Pacaembu. Era uma rua que
ainda tinha terreno baldio e onde ainda era possível você ter turma de rua.
Nós tínhamos turma de rua, que tinha
gente de classe média como a gente e tinha também menino de rua. Enfim, uma
vida ainda de brincar em terreno baldio, um monte de primos meus moravam muito
perto da gente. Eu tenho uma lembrança muito prazerosa da minha relação com a
cidade quando era menino.
P/1- Você tem irmãos?
R- Tenho três irmãos.
P/1- E eram todos da mesma faixa
etária?
R- Eu tenho 50. Um irmão de 49, um de
51 e um outro de 53.
P/1- E como era essa relação em casa,
essa vida familiar?
R- Desde o início uma relação muito
forte com o país, com responsabilidade cívica, com participação. Muita história
do início da República, tudo muito relacionado com o jornal O Estado de S Paulo.
Uma educação liberal e aberta.
Júlio Mesquita e o seu conceito de redes sociais, no início do século
P/1- Até por conta do Estado de São
Paulo, ligado à imprensa, vocês tiveram uma educação privilegiada de
informações? Como era isso em casa?
R- As grandes questões brasileiras
estavam no nosso almoço e jantar, e em todos os encontros familiares também,
que tinha sempre a presença do meu avô, todos os meus tios trabalhavam no
jornal. Enfim, o processo político, econômico e social do país é presente desde
que nós nascemos. A frase que eu mais lembro do meu pai, na minha infância, é
que nós tínhamos uma dívida com a sociedade e por mais que nós fizéssemos, nunca
íamos pagar completamente essa dívida.
P/1- E numa família ligada a esse
tipo de informação, ao jornalismo, você acabou indo fazer história e não foi
pro Jornalismo.
R- Sou jorjnalista, um profissional
de informação e comunicação – hoje muito voltado para interação com e do
público através da internet, da rede. Trabalho com o que chamamos hoje de redes
de colaboração, conhecimento e negócios, vivo no meio.
Acho uma bobagem você fazer faculdade
de jornalismo; o que pode lhe ensinar uma faculdade de jornalismo? A escrever,
a fazer lead, a como ser repórter? Acho que para tudo na vida, você
precisa ter uma base de conhecimento.
Essa lei que obriga cursar uma
faculdade de jornalismo para poder exercer a profissão é anterior à minha
formação. Sou jornalista comissionado. Minha carteira de trabalho é de
jornalista.
Historicamente, o jornal privilegiava
gente formada em Filosofia, Sociologia, História, Economia, Direito. Um bom
repórter é um sujeito que tem gana de querer saber as coisas, aprender, fazer
perguntas boas, fazer as perguntas certas.
Fui fazer História pensando em ser
jornalista. Acho que um país, para ter um compromisso com ele próprio, precisa
ter um entendimento muito forte do seu passado e do seu presente. A cidadania
começa com isso, senão você não tem futuro. E de certa forma o jornalismo é a
História do dia a dia, o primeiro registro. Acho que tinha tudo a ver fazer
História com o objetivo de ser jornalista.
P/1- E como que foi nessa época, que
você estava na USP fazendo História? Como que era esse período?
R- Foi um período também divertido.
Entrei na faculdade em meados dos anos 70. Não peguei os anos mais tensos, já
havia um processo de abertura do governo militar.
A História era uma Faculdade bastante
ideologizada. Tinha uma boa relação com todas as tendências ideológicas da
faculdade. Nunca me considerei um sujeito ideológico; tento entender o contexto
no qual estou inserido e procuro ter uma noção de para onde está indo e quais
são as variantes possíveis. Mas nunca me senti militante, nem da área
ambiental. Sempre fui uma pessoa que tentei procurar entender o meu entorno para
poder me posicionar em relação ao futuro – e sou um pouco pessimista em relação
ao processo histórico.
O grande teórico, para mim, é o
Fernand Braudel, um historiador francês, que esteve no grupo fundador da USP e
depois, quando morreu com mais de 90 anos, nos anos 80, também tinha neste final da vida uma visão
pessimista.
Lembro-me de uma entrevista dele
falando sobre progresso, no final da vida. Ele falava que se você considerar
progresso conquistas materiais e manter vivo um número maior de pessoas, a
história da humanidade foi sempre avançando nesse sentido, do ano zero até
hoje. Agora, se você considerar progresso momentos de criação, de desenvolvimento,
de felicidade e bem estar, teve alguns lapsos de progresso; o processo é
ciclotímico, não é evolutivo em termos positivos para Braudel.
P/1- Essa sua trajetória, a
faculdade, a USP, quando que você começa trabalhar no jornal?
R- Estava já há dois anos na
faculdade, foi no ano de 1977. Começo trabalhar no jornal como separador de
telegramas; era terceiro filho, toda empresa é um bicho conservador, na S/A “O
Estado de São Paulo”, tinha na minha geração quatro primogênitos. Entrei lá com
o objetivo de ser jornalista e ponto.
Meu plano de vôo era ficar sete a dez
anos dentro de uma redação, participar de todos os processos – repórter,
copidescagem, edição, trabalhar em diversas editorias – e a partir de sete,
oito, dez anos, me colocar como repórter
especial. Meu sonho de infância era ser o cronista dos confins, considerando
que os confins podem estar numa esquina de São Paulo ou num cantão da Amazônia,
ou no Oriente Médio, no Alaska, o que seja. Era esse o meu plano de vôo.
Por uma série de circunstancias no
meu processo de vida rpofissional, acabei – depois de 12 anos trabalhando na
redação e estando com uma carreira de jornalista ascendente e despontando para o
público – abandonando a carreira de jornalista para empreender dentro da S/A “O
Estado de S Paulo”.
Os jornais, as empresas jornalísticas,
o apogeu delas ocorreu entre o final do século XIX e a Segunda Guerra Mundial.
A partir da Segunda Guerra Mundial, começa uma crise, que vem se acirrando nos
últimos anos, onde há uma evasão de publicidade, portanto de receita e de
leitores. Os jornais deixam de crescer proporcionalmente às comunidades que
eles estavam inseridos e começam a ter evasão de receitas. E a nossa empresa,
em função da sua própria história, acabou valorizando mais o seu lado institucional
do que seu lado empresarial.
Eu já estava há 12 anos na redação,
assistindo e convivendo com diversas crises financeiras da empresa. Considerei
que se nenhum Mesquita fosse empreender, ninguém iria empreender e nós íamos
acabar, não íamos nunca sair dessas crises recorrentes da empresa. Voltei-me
pra telecomunicações e computação. Fui pra Agência Estado, que era uma unidade
operacional do grupo e tinha uma receita negativa de 400 mil reais. Comecei o
que chamo o Projeto Agência Estado.
Hoje, a Agência é uma empresa que
trabalha voltada para mercados profissionais, tem um expressivo faturamento e
uma expressiva lucratividade, além de um potencial de crescimento ainda
bastante grande, nesse mundo de redes.
Quando comecei o projeto, não tinha
Internet – falar em rede era uma coisa bastante relativa. A primeira rede de
distribuição da Agência Estado era baseada numa tecnologia de FM. Você usava a
sub-banda de FM, de uma rádio qualquer, para distribuir informação numa área restrita de forma broadcast. E isso
foi uma grande inovação em relação à antiga rede de telex que tínhamos na
Agência.
Quando comecei o projeto Agência
Estado, nosso foco era o mercado
financeiro, não era a área ambiental. O motivo de ter me voltado para o mercado financeiro foi
que, naquela época, era o único que estava aparelhado para consumir a
informação recebida através de telecomunicações e para ser processada em
computador e que poderia sustentar um negócio de informação.
O objetivo era aprender a trabalhar
com telecomunicações e as tecnologias digitais e o que está em torno delas,
neste mercado. Foi o que fiz. No futuro
este aprendizado poderia ajudar os jornais a achar um novo caminho para os
classificados.
P/1- Rodrigo, voltando um pouquinho,
porque eu achei curioso como você começou na Agência… Sendo um Mesquita,
entrando no jornal pra separar telegramas, como que foi isso?
R- Foi uma coisa premeditada minha.
Como estava dizendo, na minha geração, a empresa tem seis famílias acionistas;
você tinha quatro primogênitos, que desde a nossa adolescência disputavam a
posição primeira da empresa. O meu objetivo era ser um jornalista profissional
e achei que deveria entrar pelo ‘bê-a-ba’, que era separação de telegrama, quem
fazia isso eram os contínuos.
Então fiquei um ano e meio de chefe
dos contínuo. Na época você recebia todas as informações por telegrama, era
também uma posição estratégica porque você fazia a primeira divisão para cada
uma das editorias do jornal. Isso lhe dava uma noção muito apurada do fluxo de
informação de cada uma das editorias, que evidentemente é variável – você tem
momentos que está com a crise na editoria internacional; no outro na de
economia, no outro na geral, cidade. Mas existe um fluxo que, apesar das
crises, se mantém.
É também um ponto de observação da
redação e do comportamento dos profissionais. Quer dizer, como eu tinha o sobrenome
Mesquita, na hora que botei o pé na
redação, era visto como filho do Ruy Mesquita, neto do Julio Mesquita Filho e
bisneto do Júlio Mesquita, não como Rodrigo. Também era, como já disse, um bom
ponto pra entender o comportamento da corporação de profissionais que eu estava
entrando, quais eram as regras – que toda corporação de profissionais tem a sua
regra, tem a sua ética – quais eram as regras, qual era a ética, pra ir me
inserindo paulatinamente e ser visto e aceito como um profissional qualquer.
Fiz bem a minha lição de casa…
(risos) Fui visto e entendido como profissional; depois desse período de um
ano, um ano e pouco na separação de telegramas, comecei a trabalhar como copydesk
da editoria internacional. O Jornal da Tarde usava muito a copidescagem para construção de matérias. De matérias
elaboradas, não era simplesmente pentear
os telegramas das agências internacionais, como de uma forma geral se faz hoje.
Depois, trabalhei como repórter, trabalhei como sub-editor, trabalhei como
editor, trabalhei em quatro, cinco seções do jornal, fiz coberturas
internacionais, cobertura de guerra e fiz também coberturas aqui em problemas
de ocupação de terras.
Na época eu estava com 20 e poucos
anos. O Sul da Amazônia estava no início do processo de ocupação. O litoral
norte de São Paulo e todo o litoral Sul também estava nesta situação. A pressão
de ocupação começou no final dos anos 70 com a construção da BR-101. Até os
anos 70 o litoral Norte de São Paulo era habitado pelas comunidades
tradicionais, que foram expulsas depois com o processo da BR-101.
Então em termos de vida profissional
foi este início o meu no Jornal da Tarde. Foi a época mais divertida da minha
vida, os quatro, cinco primeiros anos. O Jornal da Tarde era um laboratório,
uma redação muito livre, muito inteligente, muito viva. Consolidei o meu
aprendizado profissional em formação de jornalista, ali, com aquela redação.
P/1- O seu envolvimento com as causas
ambientais é anterior a essa sua fase de matérias de ocupação ou vem depois?
R- O meu interesse pela questão
ambiental veio quase que por herança – ou é atávico. Meu pai gostava de pescar
e tinha uma casa em Cubatão de Cananéia , que na época era uma vila de
caiçaras. A nosa casa era a única de gente de fora.
Conheci essa região do Lagamar de
Iguape, Cananéia, Paranaguá, totalmente virgem. Talvez ali em Cananéia tivesse
gente que tinha motor de popa, mas em Cubatão de Cananéia o nosso era o único motor
de popa que existia; conheci esse complexo ainda com todo o seu potencial de
criadouro, sem estar depredado pela pressão da sociedade contemporânea.
Depois disso meu pai comprou um
barco, que ele usava muito. Passei dos meus 11 anos aos 18 descendo todo o fim
de semana para o Guarujá, na
sexta-feira, e saindo, indo para os Alcatrazes, para Queimada, para as ilhas, o Montão de
Trigo, a Lage de Santos ou para Ilha Bela, indo para o mar com este barco.
Quando tinha feriado, a gente fazia viagens mais longas, no verão íamos para o Rio,
para os Abrolhos no Sul da Bahia; enfim, conheci esse litoral ainda não
atacado.
Tive uma relação muito forte, durante
todo esse período, com as comunidades caiçaras dessas regiões, principalmente na região de Cananéia, Iguape e Paranaguá. Mas
também em Ilha Bela, nas praias do Litoral Norte, também em Angra dos Reis. E
depois comecei a assistir a depredação.
Agora, O Estado sempre teve uma
preocupação muito forte com a questão ambiental. Meu avô, em reportagens no
início do século passado, começou
trabalhando no jornal fazendo uma matéria sobre a necessidade de São Paulo ter
Hortos Florestais em função da pressão que estava tendo sobre as florestas
paulistas por causa das ferrovias e o processo de ocupação do Estado – mas
inicialmente eram as ferrovias.
Há uma série de matérias dele que vim
a descobrir quando já estava trabalhando no jornal. Um exemplo desta
preocupação do jornal é o Parque da Ilha do Cardoso, no começo Parque Estadual,
que foi criadol em função de uma campanha d de O Estado nos anos 60.
Então é uma questão de racionalidade.
Não foi em consequência da causa ambiental. Quando fui trabalhar com
reportagem, pensei: “Com o sobrenome Mesquita, filho do Ruy Mesquita, não vou
poder ser repórter econômico, repórter político; se for falar com uma fonte importante na área de
economia ou de política, ele não estará falando comigo, estará falando com o
Ruy Mesquita, falando com o jornal”.
Em função disso resolvi trabalhar com
micros e pequenas empresas – fiz uma série de reportagens antológicas sobre
PMEs sob o título Os guerrilheiros da
prosperidade nacional – e com questões de ocupação de terra, cujos
problemas se acentuavam na época. O meio ambiente, neste contexto, foi
decorrência.
Os militares tinham a preocupação com
o que consideravam a consilidação do Estado Nacional. Por isso, financiaram a Globo, o império da Globo, com
o nosso dinheiro. Financiarama a infraestrutura da rede da TV em nome da
unidade nacional.
Eu entrei nas questões de ocupação de
terra. E em relação à Cananéia, meu pai
vendeu a casa quando comprou o barco; e eu gostava muito de lá e uma vez por
ano levava um motor de popa, arrumava uma canoa de alumínio, punha 300 litros
de gasolina e descia em direção ao Paraná. E ficava na casa de algum caiçara,
em alguma vila. Acabei me fixando na casa do Acir. Esse senhor Acir morava na
Baia dos Pinheiros, que é uma sub-bacia da Baia de Paranaguá.
A casa do seu Acir, no fundo baía dos Pinheiros
A casa dele ficava no fundo da baia,
na foz do Rio Real, que era um rio importante da Ilha de Superagüi, um dos rios
mais importantes da Ilha de Superagüi. Morava numa casa de pau roliço, protegida
do vento sul por um morro. Acabei ficando amigo dele. E passava 15 a 20 dias por
ano na casa dele, até que fui estudar em Paris.
Era para fazer um mestrado, mas acabei
ficando como ouvinte, um ano e meio do curso de Ecodesenvolvimento na École
des Hautes Études. Quando voltei, na primeira oportunidade que tive, desci para Cananéia e fui para a casa
do seu Acir. Era uma viagem longa: atravessava a baía da Trapandé, pegava o
canal do Ararapira e, depois, o canal do Varadorouro.
Quando atravessei a fronteira de São
Paulo, começo a encontrar placas de uma companhia, da Companhia Agropastoril
Litorânea do Paraná – Capela – dizendo que tudo aquilo era propriedade dela.
Tanto as ilhas – você ali tem a Ilha do Superagüi, depois a ilha das Peças e,
depois do outro lado da ilha das Peças, a ilha do Mel e a cidade de Paranaguá –
quanto o continente. A baía de Paranaguá começa na ilha de Superagüi, que forma
a sub baía dos Pinheiros, onde Hans Staden chegou na sua primeira
viagem, por volta de 1570, e descreve esta chegada nesta baía, numa noite de tempestade em seu
livro.
A Capela tinha grilado também a área
do continente. Cheguei à casa do Acir e ele estava desesperado. Um povo
estranho tinha chegado fazia quase um ano se dizendo proprietários, tinham
trazido gente, estavam fazendo desmatamento. E eu, nessas duas semanas de férias ali na casa dele, fui levantar o que
estava acontecendo e vi que era um grilo claro.
Voltei para São Paulo e peguei esse
assunto para trabalhar jornalisticamente. Acionei a nossa sucursal em Curitiba,
que era dirigida na época pelo Dirceu Pio, um jornalista de primeiro time, e
onde estava começando o Laurentino Gomes, que hoje virou escritor de renome. E
começamos a levantar esse quadro.
Foi mais de um ano esse trabalho, com
dezenas de matérias que publicamos no jornal. E acabamos conseguindo levantar a
documentação que esta empresa tinha, que era alguma coisa que rolou na Câmara
de Guaraqueçaba, município no fundo da Baía de Paranaguá, em 1948. Os
documentos da ata da Câmara estavam rasurados. A documentação deles falava numa
suposta doação justamente na data das atas rasuradas.
Conseguimos levantar todo o contexto
mostrando que era um grilo. Esse grupo era um grupo importante, era o Grupo
Asamar, um grupo mineiro, cuja origem era siderurgia, mas que atuava em Minas,
atuava em São Paulo, atuava no Rio e atuava em Curitiba. Tinham diversas coisas
além da siderurgia – revendedora de automóvel, coisas de turismo e por aí. Lá,
eles estavam retirando madeira para
fazer carvão e tinham um projeto turístico. Tinham cercado as últimas
comunidades de caiçaras, vilas do litoral de São Paulo e Paraná. Dezenas de
vilas.
Fui a cada uma das vilas conversar
com as lideranças delas e estava todo mundo desesperado. Os caras tinham
cercado as vilas com arame farpado, tinham fechado o acesso para as roças que
eles tinham de mandioca, e estavam soltando búfalo na área. Foi neste processo
de cobertura do que estava acontecendo ali no litoral – o litoral do Paraná tem
cerca de 90 kms e essa empresa tinha grilado cerca de 60 km dos 90 – que
comecei a me envolver com o movimento ambientalista.
Uma região linda: a praia de
Superagüi, uma única praia, que se chama Praia Deserta, tem 30 km; tem a praia da Ilha das Peças, que
é a próxima, tem mais praias tanto na frente do mar, quanto para dentro do
canal. Os caras tinham grilado essas duas ilhas e tinham grilado o continente –
Batuva, no interior, estava com problemas. Uma vilazinha no interior de
Guaraqueçaba, na direção de São Paulo. No interior, tinham adulterado os mapas
da serra do mar para tirar financiamento do IBDF, o antigo Instituto Brasileiro
de Desenvolvimento Florestal.
Foi no processo de levantamento desta
situação – o Jornal da Tarde já tinha se envolvido com a questão da usina
atômica ali atrás de Iguape, na Juréia, e com o Aeroporto de São Paulo em
Caucaia – que me envolvi com as pessoas que viriam a fundar a SOS Mata Atlântica:
o José Pedro de Oliveira Costa, o Roberto Klabin, a Silvia, Adriana Matoso, o Paulo
Nogueira Neto, o João Paulo Capobianco, que já eram todos fontes do meu amigo e
jornalista Randau Marques, também fundador da fundação.
Começamos a nos articular. Inicialmente
a minha relação com esse grupo foi em função do levantamento dessa questão de grilo
no Litoral do Paraná. E a determinada altura, alguém no grupo me sugeriu
institucionalizarmos esta luta criando uma entidade não governamental em São
Paulo para trabalhar em torno dessas questões. Achei interessante, achei
interessante institucionalizar aquela articulação que estávamos criando. Achei
interessante trabalhar com um grupo que tivesse o mesmo objetivo e que esse
objetivo fosse fundamentado também em certo idealismo. E entrei no processo.
P/1- E nesse período que você fala
que encontrou algumas pessoas que montaram a SOS, existia outras ONGs nessa
época, outras pessoas que estavam em outros grupos?
R- Você tinha a FBCN, Fundação Brasileira para a Conservação da
Natureza, a mais antiga do Brasil, mas andava um pouco parada, algumas
entidades locais em Curitiba. Aqui em São Paulo você tinha uma articulação em
torno da OIKOS, que foi fundada pelo Randau Marques, pelo Fábio, pelo Roberto
Klabin e por um espanhol que não me
lembro o nome. Mas era uma entidade muito local e para ajudar a legitimar um
discurso, não tinha a dimensão do SOS
Mata Atlântica nem da pretensão que estava na cabeça das pessoas que formaram o
SOS Mata Atlântica, entre eles o Zé Pedro, o Fábio e o Roberto.
P/1- Essas pessoas com quem você
começa a conviver, a se relacionar, elas tinham um modelo de ONG de defesa
ambiental que vinha de fora ou não?
R- Não, não tinham modelo, tinham a
idéia inicial. Houve a tentativa de fazer uma usina atômica ali no litoral sul
de São Paulo, na Juréia.
P/2- Juréia.
R- Juréia. Em função da resistência para
que a usina não fosse feita ali houve uma articulação, que era a base deste
grupo. Você tinha também o João Paulo Capobianco, o Born, o grupo agora não
estou me lembrando exatamente o nome deles.
Depois veio a questão do aeroporto de
São Paulo, em Caucaia. Logo depois, veio a questão da BR-101, que iria devastar
o Lagamar, de Iguape, Cananéia e Paranaguá. Tudo isso, intensificou a
articulação, ampliou a articulação. E daí começou uma discussão de que
deveríamos procurar ter uma participação ativa no processo político.
Começou assim a Fundação SOS Mata
Atlântica. O primeiro artifício foi lançar a candidatura do Fábio Feldmann. Imaginávamos
que ele não iria ser eleito, que ele iria ter 40, 50 e poucos mil votos, não ia
ser eleito, mas isso ficava como ativo, essa massa de votos ficava como ativo
da SOS Mata Atlântica, de gente simpática, para você começar a fazer um cadastro,
enfim, você ter massa crítica para poder trabalhar e dar sustentação política.
Mas o Fábio acabou sendo eleito, num ano
que teve uma abstenção muito forte.
Se não me engano ele teve 48 mil
votos, alguma coisa por aí, e foi eleito. E ele que era para ser o presidente
da SOS. Daí a SOS, que ainda era uma entidade só com registro e estatuto, enfim
os primeiros passos, ficou órfã.
O meu objetivo era que o Roberto
Klabin assumisse a presidência, mas o Roberto não quis – apareceu uma
oportunidade para ele assumir a Fundação Florestal, que tinha um orçamento, que
tinha uma estrutura, e ele acabou indo pra lá. Daí a SOS sobrou na minha mão. Tive
então um alto grau de responsabilidade na estruturação da fundação, mas não fui
o único.
No início da SOS, o meu papel era
político; estava começando o projeto Agência Estado. Dava de manhã o expediente
na SOS e a tarde e a noite no jornal e na Agência. Botei o João Carlos
Meirelles Filho, o Clayton Lino e o João Paulo Capobianco como os executivos da
SOS. O Capobianco para fazer a relação com o público em geral, o Clayton Lino
era o homem de projetos de campo, projetos técnicos e o João Carlos era
captação, captação de sócios, captação de recursos.
Mandei o João Carlos para os Estados
Unidos, conseguimos uma bolsa nos Estados Unidos, e ele ficou ali seis meses
estudando como as entidades americanas se relacionavam com o público para fazer
captação de recursos. Ele arrumou uma boca para nós entrarmos com um projeto na
Fundação MacArthur e nós entramos com um projeto guarda chuva. Reivindicamos
400 mil dólares de investimento e a Fundação MacArthur deu. Na época foi a
maior doação que eles tinham feito para uma entidade não governamental fora dos
Estados Unidos.
Antes disso, nós tínhamos lançado a
campanha da SOS “Estão tirando o verde da nossa terra”, que foi uma articulação minha e do João Carlos
Meirelles Filho. O João Carlos procurou o pessoal da DPZ e eles criaram a
campanha. Articulei com um velho diretor do Estado, que já morreu, o José Homem
de Montes, para que essa campanha fosse veiculada em todos os meios de
comunicação da franja atlântica do Brasil.
O José Homem de Montes era o
presidente da ANJ, a Associação Nacional dos Jornais, ele gostava muito de mim
e do meu trabalho, e nos ajudou. E nós conseguimos botar isso em todos os jornais
e mesmo na Globo e rádios. Foi uma campanha monstro que lançou o nome da SOS
Mata Atlântica lá pra cima.
Foi em seguida a isso que o João
Carlos foi para os Estados Unidos, onde ele fez estágio em diversas entidades
não governamentais da área ambiental para estudar, acompanhar como era o
processo deles de captação e entrou com este projeto. Quer dizer, criou
condições para a gente lançar um projeto amplo na Fundação MacArhtur. E assim
foi.
P/1- Voltando um pouquinho, quando
vocês se formaram, se uniram pra montar a SOS vocês conseguiam imaginar que um
dia ela ia ter um peso tão grande?
R- Eu imaginava. Imaginava porque,
como editor chefe do jornal, fui um grande articulador de processos. A Judith
Cortezão, que também fez parte desse grupo fundador, tinha um grande
entendimento disso. Lancei diversas campanhas no jornal voltadas para a questão
de pequena e média empresa, voltada para questão do Estado atuando diretamente
na economia brasileira. Tinha uma sensibilidade para a articulação de segmentos
da sociedade civil.
Naquela época, ninguém falava em
sociedade civil; não era uma coisa carne de vaca como é hoje. Era participar de
articulação de uma entidade que tinha como função também articular a sociedade
civil e ser intermediário da sociedade civil em relação às suas aspirações, às
suas preocupações, e o poder público. A entidade era uma alavancadora. Ela
tinha uma preocupação em você também conscientizar o empresariado, mas mais do
que tudo ela era uma intermediária entre as questões ambientais, o público e o
poder público.
Desde o início a SOS, foi um fator de pressão. Ela também trazia a
comunidade acadêmica, que era a base nossa para realizar os projetos, elaborar
os projetos de atuação, que no meu modo de ver o objetivo era mais de demonstração
do que de fato a entidade realizar coisas; apontar caminhos, mostrar
possibilidades. Não é que ela iria administrar a questão de zoneamento, de
ocupação do litoral de São Paulo. Até hoje tem o projeto do Atlas da Mata
Atlântica, que é um fator de pressão, de regulamentação, de ocupação e zoneamento.
Foi um projeto que nasceu dentro do SOS Mata Atlântica e hoje é um instrumento
de pressão política importante.
P/1- E vocês imaginavam que ela ia
ter o peso que tem?
R- Quando aceitei pegar a presidência
da SOS era porque sabia que tinha condições objetivas de dar uma alavancada
forte ali. Se quisesse ter me lançado na carreira política naquela época, teria tido uma carreira política de sucesso,
mas não fui. Fui um grande articulador, mas a minha postura foi sempre de
retaguarda, de apoio, de suporte. Não queria me caracterizar como militante,
porque era jornalista e achava que não
era ético.Não queria ficar marcado exclusivamente como jornalista
ambientalista, não era esse o meu objetivo.
Acho que o papel do jornal é esse
também; o jornal não deve ser um ditador de regras. O jornal é intermediário do
público, quer dizer, ele se legitima na medida que traz para tona as preocupações legítimas da
sociedade em que está inserido e não que ele venha, em cima de qualquer que
seja o artifício, com o argumento, de cima pra baixo, dizendo qual o caminho a
ser seguido. Então uma entidade não governamental, de certa forma, tem
similaridade com o papel de um jornal.
P/1- Pegando ainda esse início de
todo esse trabalho, você lembra algumas histórias pitorescas dessa época?
R- Um monte. Nós estávamos falando
sobre a questão do grilo, foi quase uma guerra de guerrilhas. O chefe dos
capatazes, o chefe da turma dos homens da Capela que estavam no litoral, que eram
centenas, era um salvadorneho. Quer dizer, eles trouxeram alguém de um país
conflagrado, que vivia em guerra. E eles estavam ali num processo de guerra
contra as comunidades caiçaras, que estavam absolutamente desesperadas.
No Ariri, que era a última vila do
litoral de São Paulo antes da fronteira, naquela época não tinha luz elétrica.
Às oito horas, a vila estava fechada, dormindo. Aí não era o pessoal da Capela,
mas grileiros associados que estavam ali no lado de São Paulo e botaram como
subprefeito do Ariri um sujeito que se chamava Pedrão, que estava mancomunado
com a prefeitura de Cananéia.
Esse Pedrão era foragido por crime de
morte de um presídio do Paraná e estava ali aterrorizando a comunidade. Tinha
botado na casa dele luz elétrica com motor e botou um som de última geração.
Uma noite que eu estava lá com o Laurentino Gomes e uma outra repórter do
Estado, às 11 horas da noite, a vila não conseguia dormir por causa do som da
casa dele. E nós tomando, ali num boteco com os caiçaras, pinga. Às tantas fui
para a casa do sujeito e arrombei a casa. E veio o pretão nu; virei para ele e
disse: “Componha-se!” E o cara voltou e botou um calção e veio. Daí, no berro,
fiz ele desligar o som sem nenhuma reação.
Ele continuou lá, no Ariri, como subprefeito.
Com as provocações ali dentro da vila, envenenando cachorro, criando caso, até
que acabou sendo morto por alguém da região, na estrada que vai do Ariri para
Cananéia, para Parequera-Açu, que até hoje são 60 Km de estrada de terra.
Naquela, transitável algumas épocas do ano; quando chovia muito você ficava
ilhado no Ariri.
Depois ali também na articulação das
vilas do Lagamar, nas vilas da Ilha de
Superagüi, na Ilha das Peças, do fundo da Baía de Paranaguá, teve uma vez que
nós fomos para lá, era umas 30 pessoas, estava a Judith Cortezão, um monte de
gente da universidade, nós, e saímos em comissão, passando em vila por vila,
tendo reunião com os habitantes das vilas na igreja, articulação enfim… Teve
muitas histórias emocionantes.
P/1- E como foi que terminou essa
grilagem?
R- Foi quando as matérias começaram a
vir a tona. Eles começaram a conter, a coisa começou a ser discutida aqui e
ali. Nós conseguimos mostrar que o pessoal que eles levaram para desmatar era
gente que tinha sido deslocada de uma represa que foi construída no Paraná, eles
foram largados lá, jogados lá sem ter como sair.
São ilhas, ilhas de mangue, e não
tinha barco para os caras saírem, se quisessem. Eles estavam em condições de
trabalho quase de semi-escravidão. Nós acabamos levando a polícia do Paraná para
lá e essa turma saiu toda. A coisa foi indo, levantamos essa rasura da sessão
da Câmara de Guaraqueçaba de 1948, que teria dado as terras para eles ou para
alguém que teria repassado para eles – o papel original vinha dali – quer dizer,
havia montado um quadro, que havia uma pressão, havia uma articulação muito
grande para eles saírem.
Os diretores da Capela, costumavam
mostrar lá embaixo a fotografia da diretoria deles junto com o Aureliano
Chaves, que era vice-presidente do Figueiredo, dizendo que ele era sócio da
Companhia. Aí teve uma entrevista do JT. O Aureliano se candidatou à
presidência, e um repórter do Jornal da Tarde, o Moacir Japiaçu, ia fazer a
entrevista com ele. Peguei essas fotos, tinha conseguido cópias, passei para
ele e falei: “no final da entrevista em off você mostra isso, conta o
caso e pergunta para ele o que é que ta acontecendo”.
Quando o Japi voltou perguntei a
reação. Ele disse que o Aureliano tinha ficado roxo, azul, de todas as cores. Logo depois, a
Capela se retirou da região. O Dr. Paulo Nogueira Neto estava na SEMA criou a
APA de Guaraqueçaba, aqui para o lado de São Paulo também foram criadas algumas
APAs e outras unidades de proteção, e depois a Ilha do Superagüi foi
transformada em Parque.
A Ilha do Cardoso já era parque
estadual, você tinha a Vila do Marujá, que é uma vila de caiçaras muito
articulada. Durante este processo também tinham se movimentado mais. E o
pessoal da Capela se retirou, os títulos de terra foram dados para os
habitantes tradicionais. A região toda ficou com um o arcabouço em termos de unidades de proteção ambiental
mais forte que outras áreas do Brasil.
A BR-101, que também deveria passar
ali, foi contida, é um trecho que não foi construído. É uma área, ao contrário do
litoral norte de São Paulo que você tem uma planície costeira, que são terrenos
quaternários, são terrenos mais recentes, de areia, é uma área mais frágil; se
você passa cortando uma estrada, como a BR-101 ia abrir para ocupação, aquilo
dança de uma vez. Com isso, a região ficou mais preservada do que o Litoral Norte,
digo um pouco mais porque em termos do que você tinha ali de ostras, o que você
tinha ali de estoques pesqueiros também acabou sendo esgotado.
A questão da ostra, em função de
projetos de financiamento, acho que era da Sudepe, tem ali até hoje um criador
de ostra no Rio Itapitangui, na baía de Trapandé, em Cananéia. Esse sujeito na
realidade tirou todas as matrizes da
região; hoje você tem ostra ali na área dele e no fundo da baía dos Pinheiros,
perto da Vila Fátima, o resto acabou. Também a pressão de pesca e parelha nas
Barras – ali você tem a Barra Norte de Paranaguá, que é Barra do Superagüi,
entre a Ilha das Peças e o Superagüi; depois você tem a Barra do Ararapira;
depois você tem a Barra do Trapandé; depois você tem a Barra do Icapara.
Enfim, as parelhas, que ficam
passando logo após a rebentação, na boca dessas Barras e na área de reflexo
delas, acabaram praticamente esgotando os estoques que você tinha de robalo, de
pescada. Mesmo a caranha do Litoral Sul de São Paulo, boa parte vinha se criar
ali, bem como algumas variedades de camarão. Enfim, hoje em dia, a produção
pesqueira ali das comunidades caiçaras é irrisória se comparada com oque eram há
20, 30 anos atrás. Agora isso não é um problema só dali; é um problema mundial.
De qualquer forma, o trecho entre o Sul
da Ilha Comprida e a ilha do Mel, em Paranaguá, é o mais consevado do país,
depois das áreas inóspitas do litoral do
Maranhão e dos manguesais do Norte da Amazônia.
A equipe do Jornal da Tarde, em meados dos anos 80
P/1- Ouvindo você falar eu fiquei
pensando uma coisa – que se eu tiver enganada, por favor, você me corrija: na
década de 70, 80, não se dava tanto destaque pras questões ambientais, tanto na
imprensa escrita, quanto televisiva. Vocês chegavam a sofrer pressão, por que
normalmente quem estava por traz eram grandes organizações, grandes
empresários, governo… como que é essa fase?
R- Nesse caso que eu estava contando
da Capela – a Companhia Agropastoril do Litoral do Paraná -, eles procuraram o
Jornal, procuraram meu pai. E meu pai, como faz em qualquer caso semelhante a este, encaminhou
para quem estava tocando o processo, e era eu. Marquei a reunião com o diretor
da empresa, logo depois de uma denúncia
de trabalho escravo e como consequência a polícia do Paraná tinha tirado o
pessoal deles que estava desmatando de lá. Tinha tirado a força, eles queriam
ir embora e a empresa não dava condições para eles saírem.
Este diretor veio para a reunião. Tinha
deixado um dos líderes do grupo que eles tinham levado para lá numa sala
contígua e o sujeito entrou e começou com o discurso de que o que nós estávamos
colocando ali era coisa de comunista. Eu falei “Bom, o comunista em questão sou
eu. E comunista como? Das coisas que nós publicamos, o que não é verdadeiro?” Ele
começou uma argumentação. Eu falei “Bom, eu trouxe aqui um dos líderes do
pessoal, que estava lá e tem uma sala preparada para conversarmos gravando”. O
sujeito ficou nervoso e foi embora.
A nossa argumentação não era uma
argumentação festiva; era e é um grupo bastante articulado e com muito
conteúdo. Houve também uma estratégia, e não era só um grupo de ativistas
políticos. No processo de criação da SOS houve uma cooptação da área acadêmica,
que via com ótimos olhos você de repente ter um grupo articulado da sociedade
civil, abraçando essas questões e dando sustentação, sendo um canal de
sustentação para o trabalho deles também.
Tinha o meu nome, tinha o nome do
Roberto Klabin, tinha o nome do Fábio Feldmann, tinha o nome de gente que era
do meio empresarial. O João Paulo Capobianco, de família de empreiteiro; não
era gente irresponsável, não era gente festiva. Acho que esse objetivo nós
atingimos com pleno sucesso, de fechar possibilidades para o discurso
caricatural em cima de quem tinha preocupação ambiental.
Teve a época que era coisa de viado e
de drogado, a caricatura. Mas acho que desde o início da nossa saída nunca
houve uma tentativa de partir para um processo de denegrir a gente com esse
tipo de coisa. Foi todo um processo. A Juréia, foram anos de articulação, anos de trabalho.
Depois teve a questão do Aeroporto também aqui em São Paulo, que não era para
ser em Cumbica. Também de certa forma esse grupo da SOS estava envolvido com
aquilo. Depois a BR-101 e essa questão de Iguape, Cananéia e Paranaguá.
Quer dizer, não dava para você vir
com caricatura para cima de nós. E quando nós íamos para os debates públicos,
íamos preparados e desde o início nos
colocamos dentro do mundo empresarial como um canal de conscientização
responsável. Fomos até criticados por segmentos do movimento ambientalista,
dizendo que “era uma entidade empresarial”. Não era uma entidade empresarial;
era uma entidade nos seus primeiros anos de vida, seis, sete anos eminentemente
políticos.
O objetivo da SOS era abrir um canal
de comunicação com os meios empresariais para discutir a questão ambiental no
processo de desenvolvimento como um todo, que não poderia ser relevado de
maneira nenhuma. Se no começo tinha gente que tinha dúvida sobre isso, hoje
você abre os jornais e você vê: a questão ambiental está inserida e a tendência
é ela ganhar cada vez mais peso, porque o resultado desse crescimento material,
que a humanidade teve na era industrial, está levando ao esgotamento dos
recursos e à ameaças de mudanças do ambiente e impactos terríveis, perversos,
dramáticos.
Nós fizemos bem a lição de casa. Teve
momentos assim de você ter reuniões com o empresariado em Iguape, que eram
reuniões tremendamente tensas; era compreensível a reação deles, porque
tradicionalmente a economia do sujeito era aquela e ele não parava nem um
minuto para fazer uma reflexão se havia outros caminhos, turismo, por exemplo,
ou atividades sustentáveis. Mesmo neste sentido nós acabamos ganhando essas
comunidades.
Hoje estou um pouco mais distante da SOS,
mas as informações que tenho é que nós
estamos absolutamente inseridos na vida de Iguape, de Cananéia, de Paranaguá,
das cidades do Vale do Ribeira, enfim, da região de província de Mata
Atlântica. Atrás da SOS surgiu a rede de entidades da Mata Atlântica, que foi
um trabalho de organização e articulação, inicialmente da SOS. Agora minha
lembrança é sempre meio confusa, quer dizer, confusa não, a minha atividade
principal foi sempre a minha atividade profissional. A SOS foi e é uma coisa
complementar e que eu considero importante e muito importante na minha vida,
ajudou no meu amadurecimento como um ser político e foi uma coisa prazerosa
também.
P/2- Como o senhor sempre mexeu com
essas reportagens, sempre teve na SOS, eu queria saber em relação à evolução da
defesa do meio ambiente, a conscientização da população em geral, do tema
ambiental.
R- Em minhas conversas com o pessoal
da área ambiental, de vez em quando, sinto uma certa angústia, um certo
pessimismo, achando que a questão ambiental hoje está relegada a um segundo
plano. Acho que não; eu estava vendo as primeiras resenhas que estão saindo
desse ano, nas revistas e nos jornais. As questões ambientais têm um peso
tremendo, desde a ameaça das mudanças climáticas, que a gente está sentindo,
até a questão de esgotamento dos mares, o lixo.
Quando nós começamos esse processo,
há quase trinta anos atrás, você de repente tinha a Juréia, mas eram bandeiras,
bandeiras pontuais. Caucaia, quando se tentou fazer o aeroporto lá. Era um ou
outro jornal; hoje está na pauta, está inserido.
Acho que o movimento ambientalista
como um todo tem que se repensar em
função do contexto e do processo que nós estamos inseridos. Como atuar politicamente para que ele consiga
resultados objetivos – não que esteja fazendo mal, acho que as coisas estão
acontecendo e não dá nem para você comparar o processo hoje, em termos de
ameaça de mudança, do que era há 30 anos atrás. Há 30 anos atrás você estava
trazendo a questão para cima, você estava começando a pensar como articular que
o Estado assimilasse uma estrutura, criasse uma estrutura para cuidar da
questão ambiental, que é também uma questão problemática.
No fundo, não adianta você ter um
Ministério, uma Secretaria de Meio Ambiente; a questão ambiental deveria estar
inserida organicamente em toda a estrutura de governo do Estado de São Paulo ou
em qualquer outro Estado da Federação, em todas as secretarias e no Governo
Federal também. É diferente de um processo econômico, tudo mexe com a questão
ambiental. Então ela deve permear toda a estrutura de governo.
Mas avançamos, antes não tinha nada.
Essa estrutura que a gente tem hoje e essa estrutura têm a sua dinâmica, enfim,
de trabalhar para ganhar efetividade. Acho isso, acho que a questão ambiental
hoje está inserida na agenda do Brasil e na agenda mundial. Não há dia que
alguma questão ambiental não é abordada nos jornais e que isso de alguma forma
esteja andando.
Agora o mundo é complexo, enredado,
as coisas não mudam na velocidade que a gente gostaria que mudasse. Hoje
trabalho com redes de colaboração, conhecimento e negócios (o depoimento foi
dado em 2004); não considero a infraestrutura da internet um meio para você
organizar e distribuir a informação. Considero a Internet uma nova
infraestrutura e que, para mim, é um conjunto de redes de colaboração,
conhecimento e negócios. Agora a Internet, essa infraestrutura, ela está ainda
na sua primeira infância, ela está ainda de calças curtas.
Nós vivemos uma época em que a
economia industrial bateu no teto, ela fez tudo que ela poderia ter feito. E
está surgindo um mundo novo que é conseqüência da evolução das tecnologias de
comunicação e informação. Também mais recentemente biotecnologia, tecnologia e
tudo, mas é um processo de inovação que está surgindo aí e que reflete em toda
a estrutura, em todo arcabouço jurídico e institucional do mundo. Quer dizer,
se você pega o Estado Nacional e o compara hoje com o início do século XX…
O próprio jornal como meio de
informação, fazendo uma comparação paralela, do início do seu amadurecimento como meio de
comunicação até os anos 30, 40, tinha todas as ferramentas para interagir com a
comunidade que ele estava inserido, intensamente. Na medida em que o processo
industrial levou à explosão demográfica e ao crescimento desmesurado das
cidades – que é fruto do processo industrial – criando megalópoles como São
Paulo, distanciou o jornal do seu público, assim como isso ocorreu com o Estado
Nacional, a máquina de gestão pública, que a cada dia está mais distante do
público e dos seus interesses.
Isso ocorreu em tudo, em todas as
instituições que regulamentam a vida em sociedade. A estrutura de
regulamentação e jurídica do mundo está travada, estamos vivendo um momento de
crise, que é um momento de mudança para um outro patamar, que vai ocorrer na
medida em que as tecnologias de informação e comunicação amadurecerem e a
conectividade for uma commodity, o display para você se interconectar
for uma commodity. E, em
consequência disso, as atuais regras, instituições amadurecidas
na era industrial, na era do mundo analógico tiverem sido transportadas e
transformadas para este novo mundo, que é muito mais dinâmico e tem uma relação
muito mais intensa com os pontos de conexão possíveis entre os indivíduos e as
comunidades, se adequarem para esse novo momento.
Agora isso ocorre na velocidade da
História, dos movimentos profundos da História. É geracional, quer dizer o
problema hoje é como as redes são usadas
( o depoimento foi dado em 2004). Elas são usadas com muito mais limitação do
que elas poderiam ser, porque o público não tem o entendimento do que seja a
rede. A maioria das pessoas olha pra Internet como um meio broadcast, ela
é utilizado como a televisão; você entra vê uma informação, você sai dali, vai
para outro canal, mas você está só recebendo informação como você recebe da
televisão ou do jornal. É broadcast e não rede.
Eu e Nicholas Negroponte na Agência Estado no início dos anos 90
Na realidade ela é uma rede
bidirecional, interativa, que permite conexão multiponto, com quantos pontos
você quiser ao mesmo tempo. É uma infraestrutura para o empreendedorismo
intelectual ou econômico. A rede é muito mais um fator de articulação de
processos do que qualquer outra coisa.
Agora, o que nós somos
profissionalmente ou intelectualmente? Somos o que fizemos, somos a rede que criamos. Este é o patrimônio de
cada um de nós, este é o nosso cabedal.
Ninguém faz nada sózinho. Imagine se tivéssemos nascidos na era da rede
amadurecida e tivéssemos tido a mesma performance que tivémos no mundo
analógico no mundo digital.
Um jornal é um objeto de conhecimento; os ambientes que você cria, os ambientes da rede são objetos de conhecimento também, que vão permitir novos tipos de relacionamento entre as pessoas. Acredito que uma das possibilidades para os próximos 20, 30 anos, – quando a economia estiver mais sustentada pela rede e suas possibilidades de articulação, informação e comunicação, quanto entrarmos de fato na era do conhecimento e a rede for uma uma commodities para todo mundo, – é que nós vamos partir para o início da solução da problemática ambiental.
Não teremos necessidade de
aglomerações urbanas do tamanho de São Paulo. Vamos partir para um processo de
reurbanização e de reconstrução do que destruimos ou então a humanidade vai
sucumbir porque o planeta Terra não suporta tanto desaforo quanto estamos
fazendo com ele. Trabalho com esta hipótese, não vou assistir isso, mas enfim,
você vê que a pressão por ocupação vem
diminuindo, não tem mais a pujança, que teve na época do milagre brasileir. Não sei
mais, derivei…
P/1- Deixa eu voltar um pouquinho.
Você acha que da época que da época que a SOS foi criada pra hoje, a Mata
Atlântica ganhou?
R- Acho que com certeza ela perdeu
menos do que ela perderia se a SOS Mata Atlântica não tivesse surgido. Não só a
SOS Mata Atlântica, mas todas as entidades não governamentais voltadas para
essa área que surgiram nos últimos 20, 30 anos. Não estou acompanhando em
detalhes, mas tenho a impressão que, se
não estou enganado, tem estados que já ocorreu, nesse acompanhamento que o
próprio SOS faz através do Atlas da Mata Atlântica, já teve anos de ganho e não
perda de cobertura florestal.
Agora, me perguntavam lá no início da
SOS, qual o principal vetor, o principal objetivo da SOS Mata Atlântica? Eu
sempre achei que era educar; comunicar para educar, ajudar a formar opinião,
conscientizar. Os processos não andam na velocidade que você gostaria, você não
está educando seu filho. Os processos da sociedade acontecem numa relação mais
distante, mais atomizada.
P/1- Eu te perguntei isso porque eu
estou vendo pelo que você está falando, que existe uma preocupação com a
Amazônia, da sua parte assim, tem uma preocupação. Você acha que deveria ter
uma ONG como a SOS, como a fundação pra lá?
R- Acho que a Amazônia perdeu a
oportunidade dela, nós perdemos. Acredito que o que vai sobrar da Amazônia é a
Calha Norte, é a Bacia do Rio Negro, aquela parte, porque é a zona mais pobre
da Amazônia, tanto em termos de solo, quanto em termos de recursos minerais, florestais,
energéticos e por aí afora. Por ser a zona mais pobre, historicamente, sempre
teve menos pressão antrópica, teve menos gente. Você tem um número menor de
municípios, Barcelos, que é a primeira capital da Amazônia e fica ali no médio
rio Negro, é o maior município da Amazônia; e, se não estou enganado, o maior município do
Brasil.
E por quê? Porque não havia riqueza para
se criarem outros municípios. Se você olha hoje, não sei agora o número de
municípios da Amazônia, mas são muitos, uma foto noturna de um satélite da Amazônia,
você leva um susto. Trabalhei em 1987, 88, 89, fiz um lobby no
bom sentidojunto ao Sarney para que fosse promovido o zoneamento
ecológico e econômico da Amazônia, que fosso criado um Centro de Sensoriamento
Remoto na Embrapa. E o Sarney embarcou nesta viagem.
Primeiro com o Programa Nossa
Natureza, qua acabou com IBDF, Sudam e um monte de órgãos inúteis para criar a
atual estrutura ambiental do governo federeal, começando com o Ibama. Depois
criou o núcleo de Monitoramento Ambiental da Embrapa, que hoje é uma unidade
como todas as outras, o Centro de Monitoramento por Satélite da Embrapa, uma
unidade exmplar, prestadora de serviços ao país. O núcleo começou nascer com o
apoio para o governo Sarney fazer o programa Nossa Natureza, que foi um
rearranjo rápido de algumas questões fundamentais de regulamentação ambiental e
cujo fruto principal foi o pré projeto de zoneamento ecológico para Amazônia
que deveria ter sido levado para Eco 92, uma extensão do programa Nossa
Natureza.
Para isso, fiz um projeto junto com o Eduardo Evaristo
Miranda, que é o criador do Centro de Monitoramento por Satélite da Embrapa, e o Cirad, que é o
equivalente da Embrapa na França – financiado pelo Grupo Unip, o Objetivo, do
João Carlo Di Genio, que patrocinou e deu infraestrutura para realizarmos o
projeto. Imagens de satélite, vôos de avião e expedições de campo. Ficamos um
ano trabalhando sobre a Bacia do Rio Demene, afluente do Rio Negro, para
mostrar como essa tecnologia de satélite, ajudava, contribuía no processo de
zoneamento de uma região.
O Projeto Radam tinha mapeado todas
as riquezas: subsolos, possibilidades hidrológicas e potencial florestal, toda
essa massa de dados para você encontrar as vocações, enfim o Estado chegar
antes na região para monitorar o
processo como um todo. Trabalhar para que o processo de ocupação não seja
totalmente destrutivo. Durante mais de um anos fizemos quatro expedições para a
região. Do alto da cheia à seca total.
O Sarney fez esse trabalho, a Secretaria
da Casa Civil articulou esse processo junto com todos os centros de interesse
político de todas as tendências. A idéia era você chegar à ECO 92 com as
regiões críticas da Amazônia zoneadas, as que tinham mais pressão de ocupação,
e o projeto de zoneamento como um todo planejado. Para tapar a boca dos que faziam o discurso de
internacionalização da Amazônia, que naquela época era um pouco mais intenso, e
ter um instrumento para tirar dinheiro para o planejamento da ocupação e
proteção da Amazônia. Para ter políticas claras de ordenamento territorial para
a região.
Mas isso não foi feito. O Collor
acabou loteando o projeto com o Pedro Paulo, que era o secretário de Assuntos Estratégicos.
Loteou a realização do zoneamento, dando verbas pra cá e pra lá, sem critério. O
zoneamento virou uma colcha de retalhos, nunca foi feito como um todo. Enquanto
isso, o Amazonas, um dos estados mais atrasados do Brasil foi se desenvolvendo,
até se tornar nos últimos anos o que mais cresce no Brasil. Com isso, os
municípios todos foram se encorpando e se encorporando à economia, criando a sua
própria dinâmica local.
Não são os grandes empreendimentos de
gado ou cana os maiores responsáveis pela derrubada da floresta hoje. É a
dinâmica da economia local dos municípios a maior responsável. Com isso tudo, a
perda da oportunidade na ECO 92, graças ao Collor, e o desenvolvimento
econômico do Brasil, o que vai sobrar mesmo da Amazônia é a zona da Calha
Norte, assim mesmo mais degradada do que é hoje.
Agora, tenho sempre a esperança que
esse mundo novo que está surgindo – que é muito incipiente ainda e muito mal
entendido pelo público em geral porque a própria imprensa não tem base de
conhecimento pra cobrir o que está acontecendo – crie novas dinâmicas para que
a ocupação da Amazônia passe a ser mais inteligente.
A rede, esta nova infraestrutura que
era impensável até 20, 30 anos atrás, vai permitir níveis de articulação da
sociedade inimagináveis há muito poucos anos. E vai também fomentar a criação
de negócios com outras características dos de hoje, um mundo muito mais
cooperado e colaborado do que existe hoje. Quer dizer, a internet tem esse
grande fator, ela é uma tecnologia que fomenta a possibilidade de colaboração,
de compartilhamento. É um substrato que fomenta as possibilidades de
empreendedorismo econômico e também empreendedorismo cultural, educacional, de
forma colaborada, compartilhada. Isso vai gerar impactos no processo acadêmico,
no processo de criação, em todos os processos de atividade humana.
A revolução industrial, quando
amadurece com a linha de produção, tira
o indivíduo do centro do processo; você passa a ser uma parte de uma máquina. A
caricatura aí é o “Tempos Modernos”, do Chaplin. O processo da rede, com a
evolução das tecnologias não proprietárias, o open source e a geração de novos conceitos de copyrigths
vão gerar numa linha de tempo uma nova sociedade, que evidentemente é uma
evolução do mundo de hoje, mas premido por novas fontes de recursos, novas
infraestruturas, novas mentalidades, novas formas de ver e entender o mundo.
Desde os anos 80, quando comecei a acompanhar movimentos de empresas de
informação globais, em torno das redes de comunicação – a primeira delas é a
Reuters – fazia uma correlação com a questão ambiental. A organização da
economia industrial é piramidal, a organização da economia em rede é muito mais
nivelada, depende mais da base. Um dos teóricos deste processo, o Nicolas
Negroponte, fundador do Media Lab – o laboratório de mídia do MIT – diz que no
futuro as estruturas hierárquicas que a conhecemos hoje, de empresas, da
sociedade, vão ser substituídas por alguma coisa muito mais semelhante com o
equilíbrio que você encontra no ambiente do que com a herança que nós tivemos
do processo industrial, onde a base da economia é a energia. E o capitalismo,
no sentido de fontes de financiamento, a base de tudo.
No início da era industrial, os
capitalistas financiavam a produção atraindo os artesão para um espaço comum
provido de energia. De responsável pela produção, o artesão se tornou um
mantenedor da máquina, sua responsabilidade caiu para a manutenção, o apoio à
produção. Depois, veio toda a evolução
que conhecemos privilegiando sempre a escala. Isso gerou inovação na indústria,
fomentando sempre máquinas mais competitivas, e gerou também a concentração
capitalista, na medida em que este processo beneficia o capital através do
financiamento.
Não há dúvida, porém que este
processo beneficiou a humanidade. Na idade média, na época feudal, a Terra
estava no centro do universo, e a sociedade não tinha mobilidade alguma. Quem
nascia servo morrria nesta condição. A Igreja Católica e o absolutismo, o poder
temporal, tinham todo o poder. De lá pra cá, a mobilidade social aumentou
exponecialmente e o nosso planeta consegue manter vivo a cada anos um número
maior de indivíduos, com uma expectativa de anos vividos também maior.
P/1- Pensando na rede, você pensa a
SOS fazendo parte dessa rede?
R- Eu penso e sempre que posso
meciono isso para a fundação. Mas neste momento minha prioridade zero é
trabalhar para a empresa que estou desenvolvendo se consolidar.
Agora, já existe hoje uma rede de sites
ambientais segmentados. Você tem cento e poucos entidades não
governamentais na área de Mata Atlântica, um processo articulado de certa forma
pela SOS Mata Atlântica. O que eles são? Eles são sites de informação, que
estão ali e o cara botando: “Aqui aconteceu isso, isso assim…” Não deveria
ser assim. O ideal seria que cada um destes sites fossem um ambiente de
comunidade de prática. É uma filosofia completamente diferente.
O primeiro prioriza a coleta da
informação e organização desta informação para ser distribuída para as pessoas
que chegam lá ou são atraídas para o
ambiente por newsletters ou emails com links. O segundo prioriza a participação
ativa das pessoas na construção contínua do ambiente. Isso significa uma
construção completamente diferente do que você vê, em regra, na Internet.
Tem formas de você fomentar, emular
estes processos, e isso poderia contribuir para a organização do movimento
ambientalista se você quiser. Mas isso só é possível com visão, vontade
política e equipe. Mas ainda não chegamos neste tempo: 90% das pessoas ainda
consideram a internet mais um meio de comunicação, uma tecnologia que permite o
armazenamento infinito e uma distribuição eficaz da informação. E mais nada.
Semana passada foi anunciando que o Google
e outras empresas da internet vão indexar cerca de 15 milhões de livros. No
início talvez você não tenha acesso ao livro na íntegra, mas o objetivo é que
os livros que forem de domínio público, você faz o download em PDF ou o que
seja, da íntegra ou de trechos. Qual
será o efeito disso quando estiver disponibilizado para o público?
Qualquer sujeito hoje que está
trabalhando, tem um problema qualquer de informação, entra no Google ou na Wikepedia, bota a palavra chave e pronto. Tem
um caminho rápido e eficiente para sanar a dúvida, para esclarecer o problema. A
internet já trouxe benefícios incomensuráveis para a economia e para a articulação
da sociedade como um todo, mas é só a ponta do iceberg.
A nossa geração – tenho 50 anos de idade – por mais que você
trabalhe intensamente com computador e as tecnologias digitais – tem limitações
de entendimento, compreenção das possibilidades da rede. Não nascemos com ela implantada e amadurecida. Ela não está no
nosso cortex, não é uma extensão da nossa inteligência. As gerações futuras
não, isso vai estar imbuído dentro da inteligência do indivíduo, da sua
capacidade de articulação e expressão. O que a rede exponencia é justamente
isso, a articulação, a forma de se expressar, de se comunicar. No futuro, as
redes vão se auto criar. Serão processos quase autônomos.
Por isso, o processo de formação da
opinião pública vai ser uma coisa muito mais autônomo, complexo e sofisticado
do que hoje. E as empresas jornalísticas não vão existir como as entendemos
hoje.
As empresas jornalísticas são frutos
do processo industrial. Elas surgiram no Renascimento e Iluminismo, mas os
jornais no século XVII eram panfletos de vida efêmera; uma reação da burguesia ao monopólio da
Igreja e do poder absolutista em relação à informação. Quando Gutenberg inventa a imprens, libera o
conhecimento para todo mundo, aquilo que era um privilégio do poder, guardado a
sete chaves nos mosteiros, se torna público. E a possibilidade de você ser um
publicador passa a ser acessível para as pessoas comuns da época.
Os jornais só se organizam como
empresa a partir de meados do século XIX. O processo que leva à configuração da
maturidades da indústria de informação ocorre entre as duas grandes guerras. A
partir do final da década de 40, inicia-se a decadência, lentamente. Os jornais
não vão acabar abruptamente, mas vão acabar, pelo menos como nós os entendemos
ainda hoje.
A questão que se coloca é onde está o
poder do jornal ou por quê eles alcançaram tanto poder? Historicamente, eles se
legitimaram na medida em foram plataformas de articulação das sociedades em que
estavam inseridos. Ao mesmo tempo, eles eram o marketplace desta comunidades.
Não havia a profusão de mídias que temos hoje. Os jornais tinham quase o monopólio
da distribuição da informação editorial e comercial, os classificados, os
pequenos anúncios.
Com a internet, com a rede, todo mundo
é um publicador. É claro que esta cultura não está disseminada, mas a cada ano
ela amadurece um pouco mais. Com isso, a sociedade vai se auto organizando.
Precisamos desenvolver centros de conhecimento específicos para fomentas este
processos e isso está ocorrendo. Mais adiante, qualquer indivíduo vai ter a sua
própria comunidade na rede, refletindo a
sua personalidade, os seus interesses, a sua área de conheciment. Isso vai
gerar um processo social, econômico e políticp muito mais dinâmico do que o de
hoje.
Você já se perguntou como se formou a
sua relação com a sua comunidade, a sua cidade? A minha relação primeiro com o
mundo foi quem? Meu pai, minha mãe, minha casa, a rua, a escola, o clube, você
vai abrindo. Para as novas gerações, a
rede faz parte da relação deles com o mundo, isso dá uma abertura tremenda.
Antes tínhamos limitações de relacionamento pelo espaço físico; hoje não temos
mais.
Mas isso, este processo, ainda não é
dominante… é possível, mas não é fácil. Os caminhos não estão feitos, não
existe cultura, então o processo ainda está se montando. Mas chega um
determinado momento que aquilo flui, passa a ser o dominante. Isso em todos os
sentidos, tanto da montagem da sua rede, do seu conhecimento, a sua atividade
profissional e o processo político como um todo, que vai ser uma coisa muito
mais aberta, muito mais atomizada, do que é hoje.
Os jornais tiveram esse papel de
articulação das comunidades e da democratização da disseminação da informação.
Hoje, eles são uma estrutura de poder do mundo antigo e resistem a este novo processo. Se eles se
abrissem ao processo, assumindo a crise da indústria, teriam acondições de ser
um dos fomentadores do processo e encontrar seu espaço neste novo mundo em
construção.
Tudo isso tem a ver também com a
crise ambiental, com o reconhecimento dos impactos da nossa atividade sobre o
ambiente. O problema é que o processo econômico é sempre perverso.
P/1- A gente já está chegando ao fim.
Você podia fazer um balanço desses 18 anos da fundação?
R- Acho que o balanço é extremamente
positivo, por tudo que eu disse aqui neste depoimento. A questão ambiental se
inseriu na pauta política, na pauta econômica, na pauta empresarial, ela se
inseriu em tudo. O número de entidades aumentou barbaramente. Houve um processo
de segmentação e a SOS, de certa forma, também se segmentou, apesar de ter
virado uma instituição e por isso um membro do status quo.
Hoje os objetivos dela são mais
focados, a preocupação orçamentária é mais acirrada. É uma entidade já com
maturidade, com processo que independe de quem esteja comandando, aquilo já tem
uma lógica. Na minha perspectiva, que é específica, o grande momento da SOS foi
enquanto ela, de fato, era intermediária entre sociedade civil, o mundo
acadêmico preocupado com a questão ambiental e o poder público. E gostaria de a
ver reforçando essa missão dela, essa responsabilidade dela.
Hoje isso não é a prioridade da
Fundação. Não acho que seja responsabilidade de ninguém, é uma conseqüência do
processo e também da despolarização do movimento ambientalista. Mas acho que o
nome SOS Mata Atlântica continua sendo um nome com uma força muito grande junto
ao público. E talvez valesse a pena a Fundação procurar reforçar esse aspecto
da personalidade dela, que foi mais forte nos primeiros dez anos da história
dela. De qualquer forma ela desempenhou e desempenha um papel importante na
formação da cultura de resposnabilidade ambiental do empresariado. Da questão
de sustentabilidade como um todo.
P/1- O que representa pra você a Mata
atlântica?
R- A Mata Atlântica, como um todo, se
for para chegar à última instancia, é uma questão estética. Acho que para
cultura do ser humano, do homem, a relação com o meio ambiente foi sempre uma
base primária para o estabelecimento de um conhecimento estético. E isso se
reflete na ética, na filosofia, na economia, na política, na cultura da
sociedade como um todo.
O equilíbrio da natureza é um fundamento estético para a formação da
sociedade. Estamos perdendo. É alguma coisa do imaginário da humanidade que
está sendo jogado fora e sendo substituído por violência, que não é só física.
A Mata Atlântica para mim teve uma
importância enorme neste sentido. Da Serra do Mar na beira do litoral Norte de
São Paulo a todo o conjunto de ecossistemas que estão contidos no que
denominamos na SOS como a Província de Mata Atlântica, que é uma concepção
aberta do que seria Mata Atlântica.
A questão é você ter consciência de
que você não tem direito de vida ou morte no espaço que você vive; você tem
compromissos com o que virá depois.
P/1- Você gostaria de falar alguma
coisa que eu não perguntei?
R- Provavelmente gostaria, mas não me
lembro (risos).
P/1- Bom, então eu queria te
agradecer por você ter vindo e ficado esse tempo aqui com a gente. Obrigada.