O jornalismo entre a sobrevivência e a relevância
As notícias que você lê, os vídeos a que assiste, os tweets que viralizam – nada disso é aleatório. Hoje, quase toda a informação passa por plataformas digitais onde a mediação pública foi automatizada por algoritmos invisíveis, projetados para capturar atenção, prever comportamentos e moldar o pensamento coletivo. Essa transformação radical opera silenciosamente: reorganiza valores, invisibiliza temas relevantes e privilegia a performance comercial sobre a função cívica da informação.
Os responsáveis por essa situação são as Big Techs – Google, Meta, Amazon, Twitter/X, TikTok e outras -, que hoje controlam agendas políticas, econômicas e sociais em escala global, operando a partir de modelos de negócios oportunísticos, baseados na exploração de dados pessoais e na maximização do engajamento a qualquer custo.
Essas empresas concentraram um poder inédito sobre o fluxo informacional e não se submetem a qualquer forma efetiva de governança democrática. Além disso, tornaram-se monopólios de fato – estruturas que, ao sufocar a concorrência e limitar a diversidade de vozes, representam uma ameaça direta tanto à democracia quanto ao próprio capitalismo. Monopólios corroem os mecanismos de equilíbrio de poder e alimentam ambientes propícios ao autoritarismo, reforçando dinâmicas fascistas ao centralizarem a influência sobre a opinião pública e o comportamento coletivo.
Essa ruptura representa a substituição da mediação humana – editorial e institucional – por sistemas automatizados orientados por interesses comerciais. A consequência mais grave não é apenas a desinformação, mas a desestruturação da esfera pública, a fragmentação do senso comum e o colapso das referências compartilhadas que sustentam o convívio democrático.
Pensadores como Shoshana Zuboff, Yochai Benkler e Zeynep Tufekci vêm alertando para esse novo cenário. Todos apontam para um fato incontornável: os algoritmos hoje controlam a arquitetura da comunicação social, mas não estão submetidos a nenhuma estrutura de controle democrático. Essa é a nova censura – e ela é invisível, algorítmica, distribuída e silenciosa.
A lógica do mercado ocupou a praça pública
A tecnologia publicitária – como apontou o Guide to Advertising Technology do Tow Center da Columbia University – não apenas sustenta a economia digital. Ela organiza os fluxos informacionais e cognitivos da sociedade. Os algoritmos não informam: eles vendem. E vendem otimizando emoções, reforçando preconceitos e desintegrando consensos sociais.
O debate público nas redes sociais, onde a maioria da população agora consome informação, é regido por sistemas cujo objetivo é maximizar o engajamento, não a verdade. Isso explica, em grande medida, o crescimento do extremismo, a radicalização política e a erosão da confiança nas instituições em todo o mundo.
Zuboff define esse sistema como “capitalismo de vigilância”. Já Benkler aponta a corrosão da esfera pública. Tufekci mostra como os algoritmos manipulam afetos e recompensam a radicalização. Em comum, todos reconhecem: não vivemos apenas uma crise de conteúdo, mas uma crise de infraestrutura informacional.
O jornalismo falhou duas vezes
Neste cenário, a imprensa falhou duplamente. Primeiro, ao não denunciar com vigor suficiente essa reconfiguração profunda do espaço público. Depois, ao se submeter a ela, convertendo suas redações em departamentos de otimização de cliques, rastreamento de audiência e venda de assinaturas.
As empresas jornalísticas, com raras exceções, abdicaram de seu papel de estruturadoras do espaço público democrático. Investiram em modelos de assinatura e paywalls enquanto ignoravam o potencial de criar sistemas de escuta pública, de cobertura das conversações sociais e de articulação temática das demandas da sociedade.
Nenhuma empresa jornalística se dispôs a fomentar redes sociais de informação em torno das questões estruturais da sociedade – saúde, educação, saneamento, segurança, ciência – editadas com curadoria jornalística e abertas à interação pública.
Além disso, é importante reconhecer que até hoje, menos de 20 jornais no mundo conseguiram ultrapassar a marca de 500 mil assinantes digitais pagos. Mesmo a marca de 50 mil assinantes é alcançada por uma minoria — são exceções, não a regra. Isso evidencia que os modelos baseados exclusivamente em paywalls e assinaturas não são uma solução viável para a maioria dos veículos e não garantem a sustentabilidade da função pública da imprensa.
A consequência é que os jornais deixaram de ser referência para a cidadania ativa e passaram a ser vistos como produtos de consumo fragmentado – desconectados da função pública que lhes deu origem.
Uma nova missão para um tempo radicalmente novo
O jornalismo nasceu como um sistema de mediação. Foi, durante décadas, a principal arena pública da cidade. No Brasil, Júlio Mesquita cunhou uma frase que precisa ser resgatada: “Jamais ousei imaginar que tinha o direito ou o dever de formar a opinião pública. Tudo que fiz foi procurar sondá-la e me deixar levar tranquilo e sossegado pelas correntes que me pareciam mais acertadas.”
Essa ideia – a de que o jornal é ponto de encontro, não púlpito – está mais viva do que nunca. Mas o jornalismo precisa reencarnar essa missão na arquitetura digital da sociedade contemporânea.
É hora de investir em plataformas temáticas dinâmicas, baseadas em curadoria, escuta pública, agregação de saberes e construção de redes de confiança. O jornalismo deve parar de disputar centavos por mil impressões com o Google e o Facebook e começar a oferecer serviços informacionais estruturantes para as comunidades.
Isso exige novas ferramentas, novas mentalidades, novas alianças. Jornalistas devem tornar-se arquitetos de sistemas de informação comunitária, mediadores de processos de escuta e articulação — atuando dentro das redes, e não apenas sobre elas.
A narrativa é a mensagem
Vivemos uma revolução profunda. A segmentação, a interatividade, a personalização e o poder de computação levaram a uma nova era informacional, onde a narrativa – e não mais a notícia – é o elemento estruturante da percepção pública. Quem controla as narrativas controla a memória, a imaginação e, por consequência, a política.
Nesse mundo, a arquitetura da informação é política pública. E o jornalismo que quiser continuar existindo como força civilizatória precisa disputar essa arquitetura. Isso significa abandonar o papel de emissor e assumir o papel de organizador das redes sociais de sentido e ação.
O rejuvenescimento da economia analógica depende da vitalidade da economia digital. E o rejuvenescimento do jornalismo depende de reencontrar seu papel como mediador qualificado das inteligências públicas.
Do púlpito à praça digital
O jornalismo precisa ir além do entendimento técnico das tecnologias publicitárias e das plataformas. Precisa enfrentá-las, hackeá-las e superá-las. Não com códigos, mas com visão. Com estratégia. Com serviços que respondam à necessidade de articulação social em um mundo hiperconectado.
Não existem dois mundos – analógico e digital. Existe um só tecido social em transformação, e ele precisa de novas infraestruturas públicas de informação.
A imprensa só voltará a ser relevante quando voltar a ser parceira da sociedade. A narrativa é a mensagem. E a mensagem agora é: precisamos reinventar o jornalismo.
Rodrigo Mesquita Jornalista, conselheiro do InovaUSP e pesquisador do ecossistema informacional. Ex-diretor do Jornal da Tarde e da Agência Estado.